Fundamentos e enunciado da doutrina Fiel sobre tintos e brancos
A desregulamentação no protocolo da escolha do vinho foi-me revelada em três actos, ocorridos sequencialmente numa semana do Inverno de 1998.
Domingo,
Depois de elas coincidirem no tamboril grelhado e de eu optar pelas ameijoas, chegou o momento delicado da escolha do vinho. Absoluto desconhecedor das marcas espanholas, refugiei-me nas castas, para evitar o recurso ao empirismo pragmático de pedir o segundo ou terceiro vinho mais barato da lista – o acto de encomendar o mais barato dá um tal ar de pelintrice que só é justificável em caso de conhecimento profundo da inequívoca qualidade da marca em causa.
«Se não se importa, Jorge, prefiro tinto - mesmo a acompanhar peixe», respondeu prontamente Madalena, quando lhes perguntei: «Querem um chardonnay?». Encomendei um «cabernet sauvignon» (os «syrah» ainda não tinham entrado na moda) e atribui a opção da minha colega à chuva de notícias sobre as vantagens para a saúde do consumo regular, mas moderado, de tinto.
Na quarta feira ao almoço, no Aquário Marisqueira , em Espinho, tinha uma entrevista marcada com o Manuel José, que, acusado de ser incompetente, tinha acabado de ser despedido do Benfica,
Almoçámos rodovalho, frito (eu teria preferido grelhado, mas o convidado era ele), um dos peixes que mais aprecio, a par do cherne e do robalo. E para beber? «Quer verde ou maduro, Manuel José?». «Tinto. Quero tinto!». Acho que a curiosa expressão «ficar com a pulga atrás da orelha» é a mais adequada para retratar a como encarei esta resposta…
Sexta feira, almocei na Fundação Cupertino de Miranda, à avenida da Boavista, no Porto, com o então eurodeputado Carlos Lage. Concordamos no prato do dia – filetes de pescada com salada russa. Quanto ao vinho, já não sugeri nada. Deixei o actual presidente da CCDR Norte escolher e (eu já adivinhava…), e ele perguntou-me se eu não me importava que ele pedisse um tinto.
À terceira foi de mais. Mal cheguei ao jornal, liguei ao José Quitério, a quem fiz um rápido relatório deste estranho alinhamento conjuntural ocorrido em menos de uma semana,, ao ritmo de dia sim, dia não, em três diferentes pontos da Península Ibérica, entre uma lisboeta directora de uma revista feminina, um algarvio treinador de futebol e um eurodeputado socialista do Porto.
Quando me calei, Quitério declarou, com uma voz segura e algo grave, que eles os três tinham razão.
Que a escolha de vinhos se tinha libertado do opressivo espartilho dos tradicionais branco para os peixes, tinto para as carnes e licor para os doces.
Que o 25 de Abril chegara finalmente aos vinhos. Que estava na moda decidir em total liberdade o tipo de vinho com que se quer acompanhar um determinado prato.
Que se eu pensasse um pouco concluiria que já havia vários peixes – como o bacalhau e as sardinhas assadas – habitualmente comidos com tinto. Que ele achava muito bem a deregulamentação em curso, entre outras coisas porque, como os vinhos licorosos não são muito a seu gosto, nos jantares de maior cerimónia ele prolongava clandestinamente o tinto até aos doces.
Na posse destas informações, desfrutei da liberdade que nos foi concedida para, com base na experimentação, formular a minha doutrina pessoal sobre o particular da escolha de tinto ou branco para casar com peixes, em que obviamente discordo da teoria do meu amigo Costa Lima, que sempre que vamos jantar invariavelmente me pergunta: «Então Jorge! O que é que bebemos? Branco ou vinho?».
A doutrina Fiel tem quatro mandamentos:
1) Branco com peixes grelhados – não só os de carne branca mas também os mais gordurosos, como o atum e o salmão:
2) Branco com amêijoas, ostras e toda a família dos mariscos (a cerveja neste caso é uma altenativa válida a ter em conta) ;
3) Tinto com bacalhaus, caldeiradas, peixes assados no forno ou caldeiradas;
4) Branco ou tinto, a escolher casuisticamente, com peixe frito.