Estou de luto porque o meu Chveik ficou maneta
Interrompo hoje a publicação da Enciclopédia Sexual por um motivo de força maior. Estou de luto. A Leonor (a senhora que trata das limpezas cá em casa) partiu a estatueta de porcelana do Chveik que eu comprei há uns ano na cervejaria O Cálice, em Praga, onde Jaroslav Hasek situou o início da acção de "O valente soldado Chveik".
Demonstrando uma enorme insensibilidade (que não surpreende porque se ela fosse sensível muito provavelmente seria poeta, cabeleira ou proprietária de uma galeria de arte), a Leonor entrou-me pelo escritório dentro anunciando-me que “partira o polícia” (como se o bom do Chveik pudesse ser um polícia, valha-nos Deus) e acrescentando que “fora sem querer” – buscando assim atenuantes para a monstruosidade do seu acto na ausência de premeditação.
Fiquei como o camarada Guterres declarou estar a seguir à derrota eleitoral do Ferro Rodrigues (em estado de choque) quando reparei que ela se preparava para o inumar, sem dó nem piedade, despejando os cacos remanescentes no balde do lixo da cozinha. Interrompi esse acto bárbaro e irreflectido e estudei a situação.
O tronco e a cabeça sobreviveram à fúria devastadora com que a Leonor limpa o pó. A base partiu-se em três bocados, mas já os consegui colar. O principal problema, que não vejo jeito de resolver, é o do braço que estava a fazer a continência.
O braço direito do Chveik estilhaçou em nove pedaços, alguns deles tão pequenos como um dedo, que ainda não conseguir apurar se se trata ou não do polegar. Guardei tudo numa caixa de chá, para tentar a reconstituição quando tiver tempo e paciência. Para já, o meu Chveik dá um bocado ares de Victoria de Samotrácia.
Quero a propósito deixar aqui escrito que “O valente soldado Chveik” , do checo Hasek, é um espectacular compêndio de humor e um fantástico hino ao anti-militarismo.
Li-o avidamente e com prazer, quando tinha 15 anos, numa belíssima edição de Maio de 1971 da colecção de Livros de Bolso da Europa América, que ainda preservo.
Não tenho qualquer dúvida em declarar que derar que foi (pelo menos) um dos dez melhores e mais marcantes livros que li em toda a minha vida. Que me perdoem os espíritos dos milhões de mortos e gaseados, mas quase faz sentido que tenha havido a I Guerra Mundial para dar a Hasek o pretexto para escrever esta notável obra prima .
Já terei de ser mais comedido quanto à cervejaria O Cálice, onde estive por duas vezes. Fiquei com a ideia que se tornou uma coisa cara para turistas e que vive à custa da fama que Hasek lhe deu.