Descarga da privada ou autoclismo da retrete?
“Em 1973, fui trabalhar numa revista brasileira editada em Lisboa. Logo no primeiro dia, tive uma amostra das deliciosas diferenças que nos separavam, a nós e aos portugueses, em matéria de língua. Houve um problema no banheiro da redação e eu disse à secretária: «Isabel, por favor, chame o bombeiro para consertar a descarga da privada». Isabel franziu a testa e só entendeu as quatro primeiras palavras. Pelo visto, eu estava lhe pedindo que chamasse a Banda do Corpo de Bombeiros para dar um concerto particular de marchas e dobrados na redação. Por sorte, um colega brasileiro, em Lisboa havia algum tempo e já escolado nos meandros da língua, traduziu o recado: «Isabel, chame o canalizador para reparar o autoclismo da retrete». E só então o belo rosto de Isabel se iluminou.”
Socorro-me desta pequena história, contada pelo escritor brasileiro Ruy Castro na Folha de São Paulo, para introduzir (sim, a língua portuguesa pode ser muito traiçoeira) a magna e candente questão do autoclismo.
Na expressão “descarga da privada” começo por salientar a sabedoria brasileira em consagrar na língua o carácter eminentemente privado dos actos cometidos na sanita, que já foi devidamente sublinhado aqui na Lavandaria.
Registo ainda o facto relevante de que enquanto, deste lado do Atlântico, nós tratamos o reservatório pelo nome genérico atribuído ao mecanismo hidráulico (autoclismo), do outro lado eles preferem, com graça, designá-lo pela sua acção: a descarga.
Devo ainda dizer que me agrada a sonoridade da palavra autoclismo, que tem embutida algum valor onamatopeico, pois, em certa medida, imita o som daquilo que significa..
A palavra autoclismo é uma palavra de ser muito valiosa para os poetas, já que rima todos os ismos.
Excluindo alguns autores escolhidos a dedo (toda a Adília Lopes, quase todo o O’Neil, algum Manuel António Pina), nunca fui muito de poesia (sempre meteu impressão o desperdício de papel inerente a esta expressão) mas reconheço que para um poeta contemporâneo deve ser uma enorme tentação fazer rimar com autoclismo o cataclismo que se anuncia para 2009.
Mais acrescento que autoclismo se presta ainda a graças como a da participação no genérico de um dos programas dos bons velhos tempos do Herman de um tipo chamado Tó Clismo.