Os Moody Blues e a minha hepatite juvenil
As canções ganham vida própria. Escapam aos autores e intérpretes. Nós apoderamo-nos delas e incorporámo-las num código pessoal e intransmissível de memórias e sensações, de que elas são a chave – o Abre-te Sésamo.
Sempre que ouço o Lola, dos Kinks, vejo os caracóis da Lola, uma namorada de Verão que tive em Gondomar – e que era 100% mulher, ao invés da dos Kinks, que «walked like a woman and talked like a man». O Ser Poeta (Perdidamente), dos Trovante, é uma ligação directa aos tempos de paixão pela Isabel. E os Moody Blues recordam-me os dois meses da Primavera de 1970 em que estive preso à cama, combatendo uma hepatite A com doses industriais de repouso.
Tinha 13 anos. Os sintomas não enganavam. As minhas feições orientais, que me valeram alcunha de «Chinês» na escola primária do Campo 24 de Agosto, estavam acentuadas pelo amarelo da icterícia. E o chichi trocara a palidez habitual por uma tonalidade carregada lembrava o vinho do Porto.
O diagnóstico foi rápido. O médico disse que eu padecia de uma desorganização da circulação biliar intra-hepática, e traduziu logo: eu tinha hepatite! Recomendou repouso e dieta rigorosa, atirando para o Índex todos os fritos, incluindo ovos e batatas.
Não podia sair da cama e devia mexer-me o menos possível. A música ajudou-me a atravessar esses dois meses de reclusão. Ao fim do dia ouvia na rádio o Página Um (que abria com o instrumental Page One dos Pop Five): e no resto do tempo estava confinado a um único LP que tocou vezes sem parar num pequeno gira-discos portátil, de baquelite verde, arrumado no chão do quarto. Era o «On the Thereshold of a Dream», dos Moody Blues. Ouvi-o tantas vezes, entre os meus lençóis brancos (mas que não eram de seda), que fiquei no limiar da loucura, contaminado por aquele rock sinfónico psicadélico. Ainda hoje, fico amarelo sempre que ouço «Lazy Day» ou «Send Me No Wine».