Estive na iminência de ser um repórter estrábico
Nasci perfeitinho, com cinco dedos em cada mão e pé, como é desejável. O único senão eram os olhos, de origem tortos, desafiando a simetria. Enquanto o olho direito olhava para Oriente, o esquerdo divergia e, teimoso, virava-se para Ocidente.
Aprendi a andar e larguei as fraldas acompanhado por este meu defeito de nascença. Carinhosos e previdentes, os meus pais cedo consultaram uma oftalmologista, que os aconselharam a esperar que eu tivesse uns três a quatro anos para proceder à intervenção cirúrgica correctiva.
O problema de ser vesgo era essencialmente estético, mas também afectava a qualidade da minha visão. Tudo bem se olhasse
De miúdo, fiquei com o hábito de virar a cabeça para onde estou a olhar, o que me retira privacidade. Não consigo disfarçar o que me chama a atenção, ao contrário do que sucede com o normal dos estrábicos. Se já falou com um vesgo conhece perfeitamente a estranha sensação de conversar com alguém que não sabemos se está a olhar para nós ou para o lado.
Aos quatro anos fui à faca. A coisa correu bastante bem, tirando o facto de que não via rigorosamente nada quando acordei da anestesia. Berrei desalmadamente e não acreditei na explicação das irmãzinhas, que juravam que eu não via porque tinha os olhos tapados com umas palas. Só me calei quando elas, fartas de me ouvir, tiraram por momentos uma pala e eu confirmei que não tinha ficado cego.
O estrabismo foi corrigido, digamos que a 95%, pelo cirurgião, o dr. Castro Silva, que, do meu ponto de vista, deixa pelo menos dois grandes legados na sua passagem pela Terra. Deu-nos o seu filho Miguel, o «chef» do Bull & Bear, e impediu que eu viesse a ser conhecido como o repórter estrábico.