As minhas contribuições para um Mundo perfeito Parte IV interruptor de memória
As recordações são uma arma de dois gumes - ou de dois legumes, na avançada e desempoeirada (apesar de hilariante…), versão pachequiana. Refiro-me ao Pacheco treinador do Boavista e não ao homónimo e recém falecido «sacristão do surrealismo» (João Gaspar Simões dixit), ou «neo-abjeccionista» (na avalizada opinião do próprio).
Tenho para mim que num Mundo perfeito seríamos nós a comandar a memória e não a memória a mandar em nós que, como já devem ter reparado, é o que acontece.
À medida que vamos para velhos (a propósito, fui às lágrimas ao ler no Expresso a notícia de criação de um movimento cívico de «jovens com menos de 45 anos») damos por nós a recordar com precisão cinematográfica acontecimentos ocorridos há 20 ou 30 anos mas a não nos lembrarmos do nome de um objecto ou de uma pessoa conhecida.
Numa almoço familiar de domingo, a minha mãe (que regula a idade pela do Saramago e do Soares) é capaz de repetir duas vezes, usando sempre as mesmas palavras e sequência narrativa, o mesmo episódio da minha infância que me deixa embaraçado junto do meu filho de sete anos.
E no domingo seguinte pode voltar a repeti-lo timtim por tintim. Neste particular, a memória é como uma pilha enorme de pratos num equilíbrio instável. Se cometermos a imprudência de tirar um prato do meio, dá-se cabo de tudo.
Esta memória prodigiosa da minha mãe relativamente aos tempos gloriosos da Guerra Fria e da televisão a preto e branco, não se estende, lamentavelmente, até ao tempo presente.
Ela lembra-se perfeitamente da última vez que eu fiz xixi na cama ou do dia em que eu fui à capela do liceu rezar e pedir a Deus para não ter negativa no ponto de Matemática (depois de o ter feito e me ter espalhado ao comprido), mas não se recorda onde pôs os óculos, se trouxe ou não a bengala – e faz confusão com as datas, como não tem a certeza se hoje é sábado ou domingo, fica baralhada e não sabe se é amanhã ou depois de amanhã que tem a consulta marcada no dentista.
Quer-me parecer que a memória é uma espécie de cisterna, com uma capacidade limitada de armazenamento, e como a minha mãe já a esgotou, há já algum tempo, com tralha que já não interessa a ninguém, não tem agora espaço para guardar novas informações de que precisa.
Está mal. Nós devíamos vir equipados de origem com uma espécie de interruptor da memória, que nos permitisse apagar os ficheiros que não interessam para dar lugar a outros novos.
A nossa memória devia poder ser administrada da mesma maneira que gerimos o espaço nos armários e prateleiras, despachando roupa, livros e objectos que já não nos servem ou interessam, para criar espaço para o fato novo, os «paperback» de Martin Cruz Smith, ou o barro da Savimba.
Seríamos muito mais felizes se tivéssemos o interruptor da memória.
Por exemplo, se eu pudesse já tinha apagado o ficheiro da recordação daquele jantar da nossa patota, num restaurante de Matosinhos especializado em pratos de bacalhau, em que todos nós bebemos ainda mais do que o costume e armamos um banzé tal que a casa teve de fechar as portas.
Ficaria feliz por poder apagar da minha memória esse e outros ficheiros, que, para os exorcizar, mais tarde ou mais cedo partilharei convosco aqui na lavandaria.
Mais. Para o Mundo ser perfeito, nós devíamos nascer com uma entrada USB incorporada, que nos habilitaria a ter uma espécie de Purgatório de ficheiros de recordações.
Vejamos um exemplo. Queremos viver a próxima queca com a nossa mulher com a excitação da primeira vez? Simples. Armazenamos numa «pen» os ficheiros relativos à recordação de todas as quecas passadas.
Já lhe passou pela cabeça a enorme pedrada que seria arquivar provisoriamente algumas pastas de ficheiros nesse extraordinário limbo que seria a «pen» da nossa memória e voltar a saborear e viver, pela primeira vez, experiências como o golo de cerveja gelada a acompanhar uma francesinha, o desfrutar da skyline de Nova Iorque (vista do ferry para Staten Island), devorar as aventuras de Astérix (escritas por Goscinny), ouvir a voz de Sandy Denny, ver o «Lost in Translation» e festejar um título de campeão nacional do FC Porto?