Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Lavandaria

por Jorge Fiel

Lavandaria

por Jorge Fiel

Seg | 19.03.07

Como a televisão roubou o futebol ao povo

Jorge Fiel

 

O futebol nasceu como um jogo de «gentlemen», cresceu e desenvolveu-se como o desporto de massas favorito dos operários – uma espécie de novo ópio do povo -, e acaba de se tornar numa divisão lucrativa da indústria de entretenimento. A televisão é a principal suspeita da autoria desta radical mudança de carácter.

 

É muito provável que a primeira bola de «foot ball» tenha sido trazida de Inglaterra para o nosso país por membros da família Pinto Basto, dona da Vista Alegre. Mas o jogo democratizou-se rapidamente à medida que se massificava e em meados do século XX verificamos que os mapas das concentrações industriais e futebolística do país se ajustam. O crescente poderio da Cintura Industrial de Lisboa repercute-se nos sucessos futebolísticos do Barreirense e da Cuf  - clube de futebol privativo dos Mello, experiência que teria eco a Norte quando a Riopele criou também uma equipa de fábrica que chegou a disputar o nacional da I Dividão.

 

O futebol era um divertimento barato, adequado a bolsas pobres. Jogava-se aos domingos à tarde, o único dia da semana livre de trabalho. Os sócios não pagavam para ir aos jogos. Os campos, tal como os comboios, dividiam-se em três classes - o peão (pé), as superiores (a segunda classe, atrás das balizas) e as bancadas – todas com lugares expostos ao sol, ao vento e à chuva. Ia-se e vinha-se do futebol de transporte público.

 

Nunca me esquecerei das dezenas de autocarros verdes, de dois andares, da carreira D (futura 78), que se alinhavam vazios, à volta da Praça Velásquez, à espera dos adeptos vindos das

Antas, que depois despejaria na praça D. João I, onde não raro já circulavam os ardinas apregoando a edição do dia do Norte Desportivo, que já trazia os resultados e resumos dos jogos da tarde. 

 

O trissemanário A Bola era o mais lido, deixando a distância larga a concorrência lisboeta (Mundo Desportivo e Record) e nortenha (o bissemanário Norte Desportivo, dirigido pelo portista e vascaíno Alves Teixeira). A Bola era uma «Bíblia» que só podia andar debaixo do braço de gente que apenas vestia fato aos domingos – os que usavam gravata para ir trabalhar ou não a liam ou não queriam que se soubesse que a liam.

 

Gostar de futebol era «baixo», coisa pouco própria e mal vista pelos intelectuais. Os próprios jornalistas segregavam os seus pares dos jornais desportivos, considerando-os uma classe à parte e vedando-lhes por isso o acesso às suas organizações.

 

Os ídolos da bola, glorificados em pequenas biografias profusamente ilustradas numa colecção dirigida por Henrique Parreirão, eram heróis da classe operária e da pequena burguesia, com ascensão social limitada. Nunca teria passado pela cabeça dos descendentes dos Pinto Basto que trouxeram para Portugal a primeira bola de futebol usar a imagem de Flora, a mulher de Eusébio, para vender as finas porcelanas da Vista Alegre.

 

O aparelho de Estado adoptou uma atitude de tolerância e benevolência apologética para com o fenómeno futebol. Temente das aglomerações de massas entusiasmadas, polarizadas pelo clube mais popular e que usava o vermelho (rapidamente transformado em encarnado) nas camisolas e bandeiras, o Governo de Salazar logo tratou de os integrar, transformando as vitórias do Benfica na Taça dos Clubes Campeões Europeus nos anos 60 em vitórias da pátria multiracial (o capitão Coluna e o goleador Eusébio eram portugueses de além mar) e motivos para engraxar o nosso patriotismo – tal como no passado tinham sido os triunfos no hóquei em patins.

 

E a televisão, o mais promissor braço emergente do aparelho de Estado, aproveitou a bela campanha dos Magriços no Mundial de Inglaterra, em 66, para se massificar (1) – muitas famílias portuguesas aproveitaram esta altura para comprar o seu primeiro televisor -, o que mais tarde viria a ser aproveitado  por Marcelo Caetano para comunicar ao pais, sem intermediários, nas suas Conversas em família.

O 25 de Abril, as nacionalizações e a recuperação económica que teve como locomotiva as PME exportadoras do Norte, mudaram a face do Nacional de futebol da I Divisão. Equipas como a Cuf, Atlético, Oriental e Barreirense desapareceram da tabela, dando lugar a clubes que exprimiam o novo poder, como o Tirsense, Famalicão e Desportivo das Aves.

 

A estabilização económica e política do país lograda durante a década cavaquista, após a adesão à CEE e as reprivatizações, corrigiram este movimento de pêndulo. O novo quadro da I Divisão passou a representar menos a vitalidade económica das zonas e regiões onde os clubes se inseriam e mais a crescente importância do poder autárquico.

 

A par desta mudança na infra-estrutura económica e na super-estrutura política, assistimos a um lento mas seguro «upgrade» social e cultural do futebol, exponenciado pela explosão, um pouco por toda a Europa, dos canais privados de televisão, que na sua voracidade por audiências e novas estrelas mudaram a face e carácter deste desporto.

 

O futebol deixou de ser o jogo de domingo à tarde. Uma jornada em que todos os desafios se disputam ao mesmo tempo é um enorme desperdício, pois só se pode fazer a transmissão televisiva de um. Por causa da televisão, passou a haver futebol à sexta à noite, ao sábado à tarde, ao sábado à noite, ao domingo ao fim da tarde, ao domingo à noite e à segunda à noite.

 

Ao inundarem-no de dinheiro, transformaram o futebol num negócio, os clubes deixaram de poder ser geridos por amadores e foram obrigados a transformarem-se em sociedades anónimas, com impressionantes volumes de negócios anuais.

 

Jogadores baixos e atarracados como Lemos (2) e treinadores pouco fluentes como Cabrita (3) são incompatíveis como o novo «star system» futebolístico induzido pelas televisões. Antes de se tornar num ícone – a Galp paga fortunas para associar a imagem dele à sua marca -, Luís Figo teve de abandonar o ridículo corte de cabelo que usou no início da carreira, casou com a elegante modelo sueca Helen Svedin e fez dezenas de capas de revistas do coração. 

 

O resultado final de toda esta profunda transformação é a de que o futebol deixou de ser um espectáculo barato.

 

Joga-se quase todos os dias em estádios modernos, com todos os lugares marcados e protegidos dos rigores dos elementos e em que as empresas compraram ao preço de T5 duplex com vistas para o mar o direito de usar durante uma época camarotes onde os seus convidados beberricam um copo de vinho branco enquanto apreciam o jogo, jantam no intervalo e vêem na televisão as repetições dos golos e dos lances polémicos.

 

As quotas que os sócios pagam apenas lhe dão direito a comprar bilhetes (caros) para irem aos jogos.

 

O peão foi extinto, bem como o acesso às novas catedrais dos seus antigos utentes, atirados para o sofá de sua casa ou a mesa de um café com assinatura da Sportv.

 

E passou a ser compatível ter o estatuto de intelectual e passear A Bola (ou O Jogo) debaixo do braço. Ah, e no final dos jogos, os autocarros já lá não estão à espera dos adeptos.

 

 

……………………………………………………………..

 

(1) Em 1991, a Sic também usaria o futebol ao serviço da campanha para que os portugueses sintonizassem o terceiro canal nos seus televisores, ao comprar os direitos para a transmissão de jogos do campeonato envolvendo os três grandes (FC Porto, Benfica  e Sporting).  

 

(2) Avançado que passou como um cometa pelo futebol, tornando-se famoso ao marcar tos os quatro golos de um histórica vitória do FC Porto sobre o Benfica, nas Antas.

 

(3) Antigo jogador do Benfica que se celebrizou, enquanto treinador da selecção, ao incentivar os jogadores com a palavra de ordem: «Vamos a eles como tarzões»!

 

Comentar:

Mais

Comentar via SAPO Blogs

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.