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Lavandaria

por Jorge Fiel

Lavandaria

por Jorge Fiel

Sex | 12.03.10

Como o transbordar da sanita mudou a minha vida

Jorge Fiel

 

Não sei se já viram o Sliding Doors? É uma comédia romântica, que se passa em Londres e começa mal, logo pela manhã, com a Gwyneth Paltrow a ser despedida da agência de publicidade onde trabalhava. Chateada vai apanhar o metro para regressar a casa. Ouve o barulho do comboio a chegar quando está a descer as escadas para o cais, apressa o passo e uma criança mete-se à sua frente. A partir daqui, o realizador abre uma chaveta e mostra-nos em paralelo os dois diferentes desenvolvimentos da vida da Gwyneth no caso de conseguir entrar para o metro e de não o conseguir.

No cenário em que ela apanha o metro, há um tipo simpático que a aborda usando os Beatles e os Monty Python como desbloqueadores de conversa (escolha que me parece muito boa, apesar das mulheres excessivamente altas, excessivamente magras, excessivamente brancas e excessivamente louras não serem o meu forte – gosto mais da Penélope Cruz). Depois, quando chega a casa, comprova ser verdade que um azar nunca vem só porque dá com o namorado, um inútil que vive à custa dela, enrolado na cama com uma ex-namorada. Como é óbvio ficou tudo acabado entre eles.

Na intriga paralela, a Gwyneth não consegue apanhar o metro, volta à superfície e, quando está a chamar um táxi, um malfeitor tenta roubar-lhe a carteira, ela cai, dá com a cabeça no chão, tem de ir ao hospital receber tratamento e quando, finalmente, volta a casa, já a ex do namorado preguiçoso se tinha ido embora e ele está no chuveiro a eliminar, com água e sabão, as últimas provas materiais da traição.

Tenho muita pena que apenas na ficção seja possível fazer coisas tão interessantes como viajar no tempo – se um novo Aladino me desse agora três hipóteses, eu escolheria viver a libertação de Paris, para a euforia, o desfile de despedida das Brigadas Internacionais, para a emoção, e a passagem de ano de 2099 para 2100, para matar curiosidade - ou saber como é que a minha vida seria diferente se, na noite de 3ª feira, quando desci dois a dois os degraus das escadas de acesso ao cais da estação Cabo Ruivo porque tinha ouvi o barulho do comboio a chegar, não tivesse conseguido apanhar o metro.

Eram exactamente 23h08 quando entrei na carruagem da linha vermelha. E comecei a alimentar a secreta esperança de chegar ao Cais do Sodré a tempo de embarcar no comboio das 23h30 para Cascais (tenho um pequeno apartamento em S. João do Estoril). O comboio a seguir partia à meia noite. No dia seguinte, eu tinha de estar de volta a Cabo Ruivo às oito da manhã, pelo que meia hora de sono extra não era nada de se deitar fora.

Chegado à Alameda às 23h16, fui em passo de corrida até ao cais da linha verde, a fazer figas para que o metro não demorasse. Correu bem – na altura eu pensei assim. Não esperei mais de um minuto pelo comboio que me deixou no Cais do Sodré às 23h28. Desatei numa louca correria, escadas acima. Valia a pena atirar-me para o chão. Quando cheguei ao cais da linha 4, o comboio das 23h30 apitou em sinal de que ia fechar as portas e iniciar a sua marcha para Cascais, com paragem em todas as estações, quando eu escorreguei no último sprint e cai de bruços porque não tive presença de espírito para libertar-me do guarda chuva e do livro do Henning Mankell (A Quinta Mulher, um dos melhores) que me ocupavam as mãos e usá-las para amortecer o tombo.

Consegui apanhar o comboio das 23h30, porque fui rápido a levantar-me e uns brasileiros simpáticos aguentaram a porta do comboio até eu entrar.

Não sei o que teria acontecido na minha vida se tivesse perdido o metro em Cabo Ruivo - e por isso só pudesse ter embarcado no comboio da Linha que parte do Cais do Sodré à meia noite. A única coisa que vos posso de garantir, de ciência certa, é que muito provavelmente não estaria agora cheio de dores quando me mexo, porque parti duas costelas na queda que dei na plataforma 4.

Calculo que nesta altura, para além de estarem a começar a ficar fartos de mim, se interroguem como é que o filme da Gwyneth Paltrow e as minhas aventuras nos transportes públicos de Lisboa se relacionam com o transbordar de sanita que mudou a minha vida e deu o título a esta comunicação. A pergunta é legítima, por isso vou esforçar-me por provar que têm relação.

Fui parar ao curso de História completamente por acaso. Em miúdo lembro-me de dizer que queria ser veterinário para tratar dos animais, o que só por si revela que, no bem no fundo, até não sou má pessoa e tenho sentimentos. Na média adolescência, após ter papado dezenas de policiais do Earl Stanley Gardner, publicados pela mítica colecção Vampiro, imaginei-me um Perry Mason português a brilhar nas salas de tribunal, inocentando os clientes com argumentos demolidores que deixavam o ministério público a espumar de raiva.

Quando chegou a hora de escolher a faculdade onde me inscrever usei um método muito popular à época que consistia em escolher a partir de uma lista de cursos inexistentes no Porto – arranjando um pretexto para viver fora de casa dos pais. Foi assim que inscrevi no ISPA, em Lisboa, pois em 1974 não havia Psicologia no Porto.

Fui viver para um T1 em Santo António de Cavaleiros, partilhado com dois camaradas, o Toupeira, que no entretanto foi jornalista e agora é dono de um editora de livros razoavelmente conhecida -  não revelo a sua identidade por razões que perceberão daqui a  pouco - e o Francisco Sardo, o fundador da LCI (antecessora do PSR e Bloco de Esquerda), infelizmente já falecido, quando era professor de Lógica aqui na Faculdade de Letras do Porto.

O Sardo, que estava na tropa, ficou a dormir no átrio. O Toupeira argumentou com o facto de ter feito o contrato com o senhorio para ficar com o quarto, enquanto eu me instalei na sala.

Ocupados na tarefa de, 57 anos depois do assalto ao Palácio de Inverno, fazer a revolução socialista no outro extremo da Europa, não tínhamos tempo para minudências, como, por exemplo, substituir as lâmpadas que fundiam ou o óleo da sertã (o que tinha um resultado igualitário – tudo o que era lá frito sabia ao mesmo, independentemente se serem salsichas ou bifes).

As histórias daquele apartamento em Santo António de Cavaleiros davam para preencher os três dias que dura este encontro pelo que, para abreviar, informo-vos que um dia a sanita entupiu e obviamente ninguém considerou prioritário recorrer aos serviços de alguém especializado que resolvesse o assunto, ou, pelo menos, tentar o método da soda cáustica.

Eu e o Sardo optamos por nos abstermos de a usar, mas não ponho as mãos no fogo porque tenha sido essa também a atitude do Toupeira, que, um dia, resolveu puxar o autoclismo, numa atitude de acreditar em milagres pouco consentânea com a sua condição de marxista. A minha paciência transbordou ao mesmo tempo que a sanita, pelo, naquele momento nauseabundo, tomei a firme decisão de deixar Lisboa e Psicologia.

Claro que nós, que estudamos História, sabemos não podemos atribuir a um único facto a responsabilidade pelo desencadear de grandes acontecimentos.  A I Guerra Mundial haveria de arranjar outro pretexto para deflagrar se a Mão Negra não tivesse assassinado o Franz Ferdinand em Sarajevo. E o facto de nas aulas de Matemática no ISPA em ter dificuldade em sequer copiar as equações que o professor rabiscava no quadro também pesou no momento em que, face ao triste cenário de uma sanita transbordada, decidi voltar ao Porto.

Nós, que estudamos História, não precisamos de ver o Match Point de Woody Allen (e a verificar a importância que o facto do anel não ter caído ao Tamisa acaba por ter no desfecho da história) para sabermos que o acaso existe. No Verão de 1975, tenho de confessar que apesar de estar mais empenhado em fazer História do que em estudá-la, me inscrevi neste curso. Retomando a parábola inicial, sabemos hoje que uma das consequências desse acto é, que, 35 anos, depois, estão aqui a aturar-me.

Nós, que estudamos História, sabemos que a sorte existe, que a bola de ténis que bate na rede tanto pode cair para um lado como para outro, e que isso pode fazer toda a diferença.  Hoje posso garantir-vos que tive muita sorte em escolher, por acaso, fazer o curso de História – doutra maneira, e só para citar um exemplo, o mais provável é que nunca tivesse lido a magistral introdução dos Descobrimentos e a Economia Mundial, de Vitorino Magalhães Godinho, que aos 20 anos foi tão importante para a minha formação como ter lido aos 15 anos a Mãe, de Gorki.

Nunca dei aulas, nem fiz qualquer tipo de trabalho académico. Ainda no final do curso, decidi ser jornalista porque me pareceu uma profissão romântica que me permitiria viajar pelo Mundo à borla e conhecer muita gente interessantes  – o que se revelou verdadeiro.

Não tenho a menor das dúvidas que seria muito pior jornalista se durante os quatro anos e meio que andei a fazer o curso de História, não tivesse aprendido a relacionar os factos políticos, económicos, sociais e culturais, a ler os sinais dos tempos e interpretar as movimentações numa comunidade.

Ao fim e ao cabo, neste início do século XXI, o papel de um jornalista é o de ser uma espécie de historiador do quotidiano nestes tempos de “desvairadas mudanças de vidas e de costumes” de que nos falava Garcia de Resende, acrescentando valor ao que se conhece, ensaiando sínteses interpretativas, organizando a informação, dando pistas que nos ajudem a perceber porque é que as coisas acontecem.

Neste tempo em que a atenção humana é um dos factores mais escassos e em que vivemos soterrados por uma overdose de informação, é fundamental conseguir ouvir o que não está a ser dito, saber que o que acontece primeiro não é necessariamente o princípio, deixar o silêncio falar e decifrar os significados ocultos de algumas palavras. O curso de História é, por isso, uma ferramenta fundamental para quem, como eu, vive a tentar ver por dentro dos acontecimentos. Não é por acaso que o director do mais importante e influente jornal do país (Expresso) é, tal como nós, licenciado em História.

Muito obrigado pela paciência que tiveram em aturar estas minhas histórias.

 

Este é o texto da comunicação que apresentei hoje no V Encontro Nacional de Estudantes de História

 

PS. Na minha qualidade de jornalista biscateiro e nos tempos difíceis que correm, penso que todos compreenderão que eu nunca diga não quando me oferecem trabalho, o que me tem obrigado a andar em regime de permanente overbooking, não me sobrando tempo para actualizar blogue e completar o diário da minha excursão a Londres. Mas, e apesar de nunca ter sido o feliz proprietário de uns óculos de sol Aviator da Ray Ban, faço minhas as palavras do general MacArthur: “I shall return!”