Lenine podia ter muito defeitos (certamente os tinha, a Krupskaya que o diga), mas todos temos de reconhecer que foi muito judiciosa a sua escolha do título – Que Fazer? – para o livro que escreveu entre Outubro de 1901 e Fevereiro de 1902, onde procedeu a uma oportuna reflexão sobre as questões palpitantes que afectavam o movimento social democrata russo e só se viriam a clarificar com a posterior cisão entre mencheviques e bolcheviques.
Quando, na penumbra do interior da ampla oficina dos Pneus Ranalhão, à rua do Campo Alegre, foi pronunciada a morte do meu pneu dianteiro do lado direito (alvo de um atentado pormenorizadamente descrito em posts anteriores) achei que seria apropriado citar Lenine e perguntar o que fazer à mulher alta, sólida e despachada (mas com um espaço a separar-lhe os dois dentes da frente, do maxilar superior), que dirige o negócio e cujo nome desconheço, mas que por comodidade, passarei a designar por Maria José Ramalhão.
Preparei-me para o pior e fiz muito bem, porque veio o pior em mais uma demonstração da triste e fatal sabedoria encerrada pela na lei de Murphy – se uma coisa pode correr mal, pode estar certo que vai mesmo correr mal.
O pneu morto, apesar da fidalguia da marca (Michelin) tinha deixado de ser fabricado, pelo que eu precisava de adquirir não um mas sim dois pneus.
Não é preciso ser bruxo, um Einstein ou até mesmo fazer parte do lucrativo quarteto dos impagáveis Gatos Fedorentos, para perceber logo, ali naquele preciso momento e à primeira, que a passagem do meu problema para o plural, de pneu para pneus, iria atentar severamente, de forma indelével e irreversível, contra o já depauperado estado das minhas finanças de jornalista biscateiro.
Apesar de suspeitar que já nada haveria a fazer pelo meu pobre pneu dianteiro do lado direito, vítima de um atentado que presumia ser letal, cometido por um buraco na rua do Passeio Alegre (que a simpática Miou Miou sugere doravante passe a ser conhecido por Buraco Fiel), eu esperei pacientemente três dias, com ele arrumado na mala, na vã esperança que 2009 anos depois se repetisse o milagre da Ressurreição. A fé deve ser a última coisa a perder - e pode mover montanhas mas não devolve a vida a pneus estraçalhados, como eu acabaria amargamente por constatar.
Durante os três dias em que rodei com o magro pneu sobresselente (que ostenta um enorme autocolante cor de laranja que nos avisa ser perigoso andar com ele a mais de 80 km/hora) tive tempo para pensar a que oficina me deveria dirigir para tentar encontrar uma solução para o problema.
Hesitei entre a Norauto (tenho a ideia de que oferece um serviço barato e eficiente) e a Pneus Ramalhão. Optei por esta última hipótese, pelas seguintes quatro ordens de razões:
a)Patrióticas: a Pneus Ramalhão é portuguesa e a Norauto é francesa;
b)Políticas; após uma campanha eleitoral em que todos os partidos, sem excepção, defenderam apoios às micro. pequenas e médias empresas julguei mais adequado recorrer a uma empresa desta categoria do que a uma gigantesca multinacional;
c)Toponímicas; a infausta ocorrência que vitimou o meu pneu dianteiro, do lado direito, da minha carrinha Fiat Marea, teve lugar na rua do Passeio Alegre, e a Pneus Ramalhão está instalada na rua do Campo Alegre. Achei que esta alegre coincidência poderia ser um sinal divino;
d)Proximidade; a Pneus Ranalhão não só fica muito mais perto de minha casa do que a Norauto, como ainda por cima situa-se a escassas centenas de metros na Botânica, uma das minhas esplanadas preferidas, onde calculei que poderia montar escritório enquanto me tratavam do pneu.
Posto isto, dirigi-me à Pneus Ramalhão onde fui bem recebido, mas logo desenganado. Emitiram a certidão de óbito mal olharam para o pneu acidentado. O milagre ocorrido com Jesus Cristo, que segundo as Escrituras ressuscitou ao Terceiro Dia, não se ia repetir com o meu pneu.
Senti logo ali, naquele preciso momento, que o meu calvário estava longe de estar terminado.
A escolha da fotografia de Jean Paul Sartre para ilustrar este post representa uma tentativa de emprestar alguma densidade intelectual a esta narração, idiota e em fascículos, dos dramas que ainda afectam a minha vida por causa de um pneu furado. O pretexto para a usurpação da imagem do inventor do existencialismo é o facto de ter ficado com as mãos sujas após ter mudado o pneu - uma piscadela de olhos, portanto, a Les Mains Sales (1948), onde o filósofo francês defende o engajamento político dos intelectuais
Costuma dizer-se que o tempo é dinheiro (do inglês “time is money”) e isso é, com toda a certeza, verdade. Mas esta minha odisseia do pneu e jante assassinados por um buraco anónimo (que a preclara Miou Miou sugere, simpaticamente, que perca essa condição e passe a ser cognominado o Buraco Fiel) veio demonstrar que a informação pode ser tão valiosa como o tempo. Ou seja, informação é dinheiro.
Como presumo estão recordados, deixei a carrinha Fiat posta em sossego, em frente à porta da minha garagem, e só lhe voltei a pegar alguns dias depois, para levar o João à escola de futebol Hernâni Gonçalves, onde ele treina no lugar de defesa central, convencido que um dia o FC Porto vai conseguir transaccionar o seu passe por 30 milhões de euros, como fez com o Pepe e o Ricardo Carvalho.
Neste interim, um vizinho amigo e observador reparou que o meu pneu dianteiro do lado direito estava totalmente em baixo e diligentemente comunicou o facto a uma pessoa lá de casa.
Sucede que a pessoa (que, nem que me torturem, confessarei que tem 17 anos e o seu nome começa por C) que recebeu essa preciosa informação se esqueceu de a comunicar ao interessado (eu).
Resultado deste esquecimento? Ao rodar com o pneu vazio entre a avenida da Boavista e a Damião de Góis dei o golpe de misericórdia no pobrezinho.
No trajecto, constatei que o carro se inclinava tão perigosamente para a direita como o BNP (aquele novo partido inglês de extrema direita que não aceita a inscrição de pretos e que as sondagens dão como recolhendo 22% das intenções de voto), mas como estava atrasado só quando parei à porta da escola de futebol, onde constatei tristemente que o pneu estava completamente estraçalhado – e que nem com a ajuda de um desfibrilhador eu seria capaz de o ressuscitar.
Fui à mala, extrai o macaco e o pneu de reserva, e meti as mãos à tarefa de mudar o pneu. No final, tinha as mãos sujas. Enquanto as lavava, passaram-me pela cabeça os nomes de Sartre e de Judas.
Tive um problema com um pneu. Refiro-me a um pneu pneu, de marca Michelin, e não aquela inestética camada de adiposidade que se acumula à volta da minha cintura.
Estou a falar-vos do pneu da frente do lado direito da minha carrinha Fiat Marea e da respectiva jante, que não conseguiram recuperar da agressão que lhes foi perpretada por um buraco anónimo – a este propósito, vou já acrescentar à lista de Tarefas do Outlook uma lembrança para ligar ao meu preclaro amigo Germano Silva, que integra a Comissão de Toponímia do Porto, sugerindo-lhe que passem também a baptizar os buracos mais conhecidos das ruas com o nome de figuras e acontecimentos relevantes da cidade, uma vez que isso facilitaria a troca de opiniões e permitiria até a elaboração de um mapa.
Estava eu a dizer que após ter sido atropelado por um buraco, algures no Passeio Alegre, notei que o Fiat começava a descair para a direita, o que é sempre extremamente perigoso.
Como fiquei preocupado com esta tendência direitista do Fiat, logo que pude parei o carro para proceder a uma inspecção sumária.
Uma breve vista de olhos ao estado do pneu, acompanhada do proverbial pontapé aplicado com a biqueira do sapato, não me permitiu detectar qualquer anormalidade, o que me leva a concluir que, das duas uma, ou sou mais nabo do que era preciso nesta matéria ou então há que pegar no velho provérbio “de noite todos os gatos são pardos” e adaptá-lo aos tempos modernos da seguinte maneira: “de noite todos os pneus parecem cheios”.
E continuei a guiar em direcção a casa, onde estacionei o carro e não mais lhe liguei ao assunto.
Como levo muito a sério ideia de que os museus são as novas catedrais, aos domingos de manhã, sempre que posso vou a Serralves. Fica tão barato como papar uma missinha e saio sempre a ganhar muito mais.
Que Deus Nosso Senhor me perdoe (se for caso disso) mas não há homilia que se compare em estímulo e desafio à exposição Sem Saída, Ensaio sobre o Optimismo, de Augusto Alves da Silva, que mais uma vez nos vem provar (como se isso ainda fosse preciso) que a fotografia nos ajuda a ver.
Recomendo vivamente que vejam com tempo a espectacular série Iberia, em exibição na parede XXXL da sala que fica logo em frente à entrada e nos faz viajar por Espanha, on the road por estradas de terra batida, tendo a estridente banda sonora de rádios espanholas.
A obrigação de ter ir às compras ao Continente da Arrábida, não me deixou com tempo (os hipermercados fecham às 13h00 uma hora ao domingo, numa das mais perniciosas consequências da fraqueza guterrista) para saborear devidamente a série Book, onde Augusto Alves da Silva navega com maestria por aquela terra de ninguém entre o erotismo epornografia.
Mas prometo voltar, tal como o general Mac Arthur (“I shall return”) quando teve de abandonar precipitadamente as Filipinas, durante a II Guerra Mundial.
No entretanto, não resisto a partilhar com um pedacinho de ouro do Augusto Alves da Silva:
“As minhas imagens são claras e o que nelas aparece é reconhecível. São, de certa forma, aquilo que um fotógrafo amador tenta fazer quando trás fotografias das viagens para mostrar aos amigos (…) Quero que as minhas imagens, porque aparentemente cristalinas, possam cativar quaisquer pessoas, para depois confundi-las. Se se sentirem confusas é porque estão a raciocinar. Talvez comecem a não tomar como garantido aquilo que está à frente delas”.
Eu raciocinei, apesar de não em ter sentido confuso. Daí a urgência em voltar a Serralves. Já no próximo domingo de manhã.
Órgãos de Estaline em actuação, nos arredores de Berlim, em 1945, quando o pessoal tossia à vontade
Quando algures em 2034 se fizer um filme de época passado no segundo semestre de 2009, os pesquisadores competentes terão o cuidado de instruir os actores a, sempre que acometidos de um ataque de catarro, tosse ou espirros, protegerem a boca com o antebraço e não com a mão - como aconteceu durante séculos até à globalização da segunda mais perniciosa invenção mexicana de todos os tempos (presumo que a telenovela continua a ocupar o lugar mais alto do pódio).
A gripe A teima ficar muito aquém dos objectivos em mortos e contaminados, mas tem o indiscutível mérito de ter mudado gestos que há séculos estavam ancorados na espécie humana.
Todavia, eu resisto. Como sou bastante exagerado, não espirro apenas uma vez.
O meu sistema respiratório tem a capacidade e a idiossincrasia de produzir espirros em série. Quando espirro, não sai nem um nem três -mas antes uma salva, às vezes uma dúzia, que até faz lembrar os órgãos de Estaline (usados pelos soviéticos com apreciável sucesso durante a II Guerra Mundial). Apesar disso, quando deu vazão aos meus espirros em série, continuo a proteger os presentes do chuveiro de micróbios, da forma tradicional: ou seja, colocando ambas as mãos, em forma de concha, à frente da minha boca.
Tenho a dizer, em jeito de conclusão deste desabafo, que acho uma rematada panelereice essa mania de tossir para o antebraço – e estou convencido que não vai pegar e, daqui a um ano (o mais tardar), está outra vez toda a gente a tossir para mão, como antigamente.
A vista de que usufruí hoje ao almoço, a partir de uma mesa da Praça da Alimentação do Vasco da Gama
A minha vida já vai suficientemente longa para ter testemunhado importantes transformações estruturais na sociedade portuguesa, como a Revolução do 25 de Abril, as noites de glória do FC Porto em Viena, Sevilha e Gelsenkirchen, a nossa adesão à CEE e a emigração da sopa do fim para o princípio da refeição.
Quando era miúdo, na longa noite negra do salazarismo, a sopa situava-se no final da refeição, imediatamente antes de sobremesa, enquanto agora funciona como uma entrada.
Este salto da sopa ilustra, no meu entender (que como sabem não é modesto), o gradual processo de enriquecimento da sociedade portuguesa.
A sopa, que era um prato barato e pouco qualificado, usado pelos pobres para acabar de encher a barriga no final de uma refeição frugal, passou a ser um prato janota numa sociedade obcecada pela saúde e pela alimentação correcta.
Este upgrade da sopa simboliza a fantástica evolução que o nosso país atravessou em 35 anos de democracia.
Esta minha reflexão sobre a sopa decorreu durante o almoço de hoje, na praça de alimentação do Vasco da Gama, onde depois de hesitar entre o Menu Prazer e o Menu Satisfação (meus Deus!, quem serão os padrinhos destes menus?) optei por este último, que me garantiu, contra o pagamento de 4,80 euros, uma salada (feijão frade, cebola, couve mineira, rodelas de pepinos, bocados de tomate e cubos de queijo e fiambre, regados por molho vinagrete), uma sopa juliana, um pão e uma agua Serra da Estrela fresca.
Comi primeiro a salada e depois a sopa, porque gosto da sopa fria.
Sempre fui adepto de acordar cedo. Na vida tem de se fazer escolhas. Como não se pode desfrutar, sempre e em simultâneo, da noite e da manhã, eu opto por tirar partido do romper da bela aurora.
Penso mesmo que devo creditar alguns centímetros do meu 1m82 ao hábito de acordar cedo, demonstrando assim a justeza do ditado “deitar cedo e cedo erguer da saúde e faz crescer”.
Gosto de me deitar com as galinhas e não corro as persianas para não impedir a primeira claridade de entrar livremente pelo meu quarto dentro.
Adoro nascer ao mesmo tempo que o dia, mas não aprecio antecipar-me ao Sol. É muito desanimador despertar quando ainda é noite, como aconteceu hoje, porque tinha de estar na paragem do Bessa, às 6h38, a apanhar o 502 para o Bolhão, onde faço o transbordo para o metro, de modo a estar em Campanhã sem stress a tempo de comprar o bilhete, espreitar as primeiras páginas dos jornais e tomar o pequeno almoço, antes de para o Alfa 120, que parte às 7h45 para Santa Apolónia.
Não me importo de trabalhar de sol a sol, mas desagrada-me acordar e ainda ser noite. Se Deus Nosso Senhor quisesse que trabalhássemos durante a noite teria, na sua infinita sabedoria, arranjado maneira de providenciar luz natural para isso – e não a escuridão.
A pressão de água no duche é daquelas pequenas coisas decisivas para começarmos o dia com alegria.
Não sei porquê (mas, mais tarde ou mais cedo, terei de averiguar a causa dessas alterações de humor), a pressão da água no meu duche é altamente temperamental.
Hoje estava forte, tipo chuva torrencial tropical, no ponto exacto para contribuir para o despertar do meu cérebro. Mas ontem era um fio de água, uma espécie de chuva molha tolos que só em lembrava a impotência dos riachos alentejanos no Verão.
Eu sou um homem de duche. Mantive uma banheira em casa, just in case, de um dia nos apetecer um banho de imersão, mas passam-se meses (direi mesmo anos) sem recorrer a essa modalidade. Mas para um duche ser feliz, a pressão da água tem de se mostrar à altura dos acontecimentos – ou seja deve ser muito elevada.
Hoje vou fazer uma coisa que detesto (e por isso não recomendo a ninguém, nem ao meu pior inimigo, pessoa que ainda não consegui identificar mas que de certeza existe) que é colocar entre parêntesis a leitura de um livro para meter outro pelo meio. Um infidelidade, portanto. Ou seja, estou prestes a cometer o pecado do adultério.
Um livro não é como um jornal ou uma revista, que se consomem como petiscos – folheiam-se, lê-se títulos, legendas, dá-se uma espreitadela a uma matéria, fica-se medianamente interessado na coisa, mas segue-se em frente, pensando depois voltar a ela, o que até pode mesmo vir a acontecer.
Um livro não é um dicionário, o Google, um enciclopédia ou o Almanaque do Borda d'Água que se consultam para desfazer uma dúvida ou recolher uma informação.
Na minha opinião (que como todos sabem não é modesta) um livro tem de ser lido do princípio ao fim, com o mínimo possível de interrupções. Um livro deve ser consumido o mais depressa possível. Um livro é como o champanhe que logo após se soltar a rolha começa logo a perder qualidade – e quanto mais tempo estiver aberto pior.
Por isso, custa-me interromper hoje a leitura do Bad Company, de Jack Higgins (vou sensivelmente a meio da intriga, ou seja estou completamente apanhado pelo seu magnetismo), numa edição inglesa em paperback, adquirida por três euros na Feira do Livro da Gare do Oriente.
Custa-me muito pôr assim os cornos ao Higgins, mas tem de ser e o que tem de ser tem muita força. Quinta feira, o meu preclaro amigo Juca Magalhães lança o seu mais recente livro, intitulado Um Amor em Tempo de Guerra, na Pousada do Freixo, e eu terei de pronunciar umas palavras sobre o assunto e não sou daquelas pessoas a quem basta uma vista de olhos às badanas para se atreverem a mandar, em público, umas de postas de pescada sobre um livro. Daí a infidelidade. Trata-se de um motivo de força maior.