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Lavandaria

por Jorge Fiel

Lavandaria

por Jorge Fiel

Dom | 30.11.08

Dez dias na Polónia sem ver uma única joaninha

Jorge Fiel

As verdades têm de ser escritas. Mas antes uma declaração prévia. Não duvido por um instante que seja que a Biedronka (cadeia polaca de supermercados controlada pelo grupo Jerónimo Martins) tenha 1300 lojas na Polónia e seja a líder da distribuição alimentar neste grande e promissor país da Europa Central.

Durante dez preenchidos dias percorri, por terra e ar (falhei o mar, fica para outra vez uma visita a Gdansk), a Polónia.

Vistoriei Varsóvia. Viajei de comboio até Cracóvia. Fui a Nowa Hutta. Demorei-me um dia entre Auschwitz e Birkenau. Inspeccionei Wroclaw. E durante todo este périplo (1)  não vi uma única joaninha (Biedronka em polaco quer dizer joaninha, como já se devem ter apercebido se olharam para a fotografia).

À mingua de Biedronkas, restringe o meu reconhecimento na área de supermercados a duas cadeias locais, a Jubilat e a Alma.

A Jubilat tem uma loja de alguma envergadura que é vizinha do Ibis onde estive aboletado e revelou-se uma cadeia de categoria média, do tipo Jumbo ou Continente, onde se vai às compras não pelo prazer de esperar ser surpreendido pelas prateleiras, mas tão só para repor as faltas de shampoo anti-caspa. Leite meio gordo, liquido amarelo para a louça, papel higiénico ou maçãs gala royal. Mais do mesmo, portanto.

Já o Alma é outra loiça. Apesar da iluminação intimista, tipo pube, que não tenho certeza seja a mais adequada à função (uma vez que os objectos da tentação são inanimados  - e não grupos de boazonas de minisaia já um bocado bebidas e com ar de quem está numa despedida de solteira), está claramente na categoria superior dos supermercados delicatessen, como o El Corte Inglês ou até mesmo o mítico Dean & Deluca.

O Alma não esgota o segmento superior na oferta de mercearia fina em Cracóvia, patamar onde é obrigatório incluir a Kredens (que em polaco quer dizer aparador) .

A Kredens não é generalista como a Alma (de quem recentemente passu a ser propriedade), concentrando a sua oferta em produtos de marca própria, embalado e rotulados de maneira a se tornarem irresistíveis para serem transformadas em prendas (2), se levarmos em conta a relação preço/aspecto.

A gama da Kredens é limitada a conservas alimentares (compotas, bolachas, bolos, frutas, salgados), mostardas, salsichas, chás e uma variada gama de frascos de vodka com todo o tipo, possível e imaginário, de aromas e sabores.

 

(continua)

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(1) Cansativo para todos, em particular para os frequentadores assíduos desta Lavandaria

 

(2)  E os sacanas dos donos da Kredens sabem perfeitamente disso e para capitalizarem este nicho do seu negócio. Têm um balcão estrategicamente colocado junto às salas de embarque, na zona de partidas internacionais do aeroporto de Cracóvia, destinado a caçar os zlotys que sobraram na carteira dos turistas, em geral – e os euros dos turistas distraídos, em particular que se esqueceram de comprar uma lembrançazinha da Polónia para a futura sogra.

 

Sab | 29.11.08

A explicação possível para o bombardeamento cirúrgico a que submeti a Casa do Sapo que Canta

Jorge Fiel

Ora aqui temos um sugestivo pormenor da fachada da Casa do Sapo que Canta, riscada pelo arquitecto Teodor Talouski

 

Aquela história do homem ser um animal de hábitos é verdade. Não tenho a certeza que o dito se aplique à mulher (bem, eu sei que elas têm regras mensais, mas isso não as torna automaticamente pessoas de hábitos), mas pela parte que me toca, assino por baixo.

Sempre que desembarco numa cidade, em turismo, executo uma série de procedimentos pré-estabelecidos.

Esta liturgia começa com uma análise atenta dos mapas da cidade e da rede de transportes públicos (táxi só admito usar em deslocações de e para o aeroporto, e mesmo assim em casos excepcionais), seguindo-se-lhe a calendarização da visita.

Os bairros que me interessa espiolhar são cuidadosamente hierarquizados, por ordem decrescente de importância, e encaixados no tempo que tenho disponível.

Devo confessar que este ritual, a que tento emprestar uma precisão militar, bebe directamente a sua inspiração na táctica da tropa de quadrícula usada pelo exército português durante as guerras coloniais (1).

Atendendo ao desfecho da refrega, pode ser-se levado a pensar que a táctica da quadrícula não deu grande resultado em África (2), mas no que toca a operações de reconhecimento e exploração de cidades, eu tenho-me dado lindamente com ela.

Mas, atenção, é essencial que o programa de carpet bombing das ruas dos bairros mais atraentes (Wawel, Stare Miasto, Nowy Swiat, Stradom, Kazimierz, Wesola, etc, no caso concreto de Cracóvia) tem de ser sabiamente complementado com bombardeamentos cirúrgicos de alvos estratégicos localizados fora do perímetro das quadriculas predefinidas como prioritárias.

Equivale isto a dizer que a bem sucedida exploração de uma cidade exige o cruzamento destas duas listas rigorosamente hierarquizadas, a de base geográfica e a de alvos específicos –  no caso de Cracóvia, ver dragão que cospe fogo, ir ao atelier da Iwona, visitar o Museu Nacional, apreciar a fachada do sapo que canta (3), subir ao monte Kosciuszko, dar um passeio de barco no Wisla, e por aí adiante.

Na confecção desta duas listas, há uma série de items obrigatórios, que sigo, sem dó nem piedade, qualquer que seja a latitude da cidade que vou desbravar.

Passo a descrever as cinco coisas que considero obrigatórias fazer numa cidade que se visita pela primeira vez:

1.Subir a um dos pontos altos de cidade, para pastar uma panorâmica em plongée;

2. Ir a uma livraria e comprar pelo menos um livro, mas preferencialmente dois (4) – um guia da cidade produzido localmente, um romance de um autor indígena e/ou uma breve história do país;

3. Inspeccionar um museu, um supermercado, uma igreja, um supermercado e um centro comercial;

4. Atravessar a pé a principal ponte (5);

5. Estacionar durante um bom par de horas no café mais in e/ou tradicional, a morder o ambiente e ler um jornal ou o guia.

 Aspecto de Cracóvia vista do alto do Monte Kosciuszko

(continua)

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(1) Tomemos como o exemplo a Guiné-Bissau. O mapa deste território era meticulosamente dividido em rectângulos (as famosas quadrículas) e em cada um deles era instalado um quartel povoado por membros das NT (Nossas Tropas) que tinham como missão assegurar que o IN (Inimigo) não perturba a paz e a ordem na sua quadrícula (não raro não conseguiam desempenhar esta missão, mas isso já é outra história).

 

(2) Se bem que quem pensa assim está muito provavelmente a cometer o erro de reduzir as guerras coloniais a um mero conflito militar, quando na verdade o que estava em causa era o lado de onde soprava o vento da História…

 

(3) A Casa do Sapo que Canta fica no número 1 da rua Retoryka e a sua curiosa fachada merece ser vista. O nome da casa é um piada que abrande o uso e localização deste edifício de finais do século XIX, que era uma escola de música onde a cantoria dos alunos era acompanhada pelo coaxar dos sapos do rio Rudawa que corria próximo.

 

(4) Em língua inglesa, bem entendido.

 

(5) Este item não se aplica, bem entendido, a cidades desprovidas de pontes ou que, como Lisboa e Macau, estão servidas de pontes cuja dimensão desaconselha a sua travessia a pé.

 

Sex | 28.11.08

O estranho caso do rapto da estátua do camarada Vladimir Ilitch Lenine em Strzelecki Park

Jorge Fiel

O Voto, de Wlodzmierz Siwierski. Apesar dos esforços do POUP, os cidadãos da Nowa Huta não substituíram o catolicismo pela nova religião

As contas de fazer de Nowa Huta o coração proletário do POUP (1) saíram completamente furadas à clique estalinista instalada em Varsóvia.

A Siderurgia Lenine, começada a construir em 1950, já deitava fumo em 1954, ano em que foi inaugurada com a solenidade devida a uma grande realização socialista – era o maior forno da Europa, com capacidade para produzir sete milhões de toneladas de aço por ano e empregava 40 mil pessoas.

A reputação internacional da Siderurgia Lenine era tal, que quando foi à Polónia, Fidel Castro preferiu visitá-la a ir dar uma espreitadela Rynek Glówny de Cracóvia, uma das mais deslumbrantes praças do Mundo, o que, diga-se de passagem, não abona nada a favor do velho barbudo.

Sucede que a Siderurgia se tornou numa praça forte do sindicato oposicionista Solidarinosci e que os operários e seus familiares  rapidamente se transformaram numa pedra no sapato dosdirigenets do POUP.

Como se não bastassem as recorrentes movimentações a favor da construção de uma cidade que era suposto ser o coração do ateísmo polaco, os habitantes de Nowa Huta divertiam-se a pregar partidas às estátuas de Lenine colocadas em Strzelecki Park.

A primeira desapareceu, em circunstâncias nunca totalmente esclarecidas (o que vale dizer que se foi raptada a verdade é que os autores da façanha nunca se deram ao trabalho de exigiram resgate).

A segunda foi alvo de inúmeros actos de vandalismo, um dos quais fatal para o autor (morreu na explosão prematura da bomba que lá estava a colocar), até ser empacotada e guardada num armazém, na sequência da queda do Muro de Berlim.

Mas ao contrário do que seria de supor, a estátua não encontrou finalmente o sossego. Um empresário sueco soube do seu paradeiro e comprou-a às autoridades polacas por cem mil coroas para a instalar num local público em Estocolmo, onde está disponível para intervenções de jovens artistas, que entre outras coisas já fizeram alguns piercings ao camarada Lenine.

Os habitantes de Nowa Huta habituaram-se a não dar troco nem aos fundadores da cidade, nem ao regime que lhes sucedeu. A praça central chamava-se praça Stalin. Em 2004 foi rebaptizada Ronald Reagan. Eles sempre a conheceram pelo mesmo nome – Centralny.

 

Inauguração, em 1954, da Siderurgia Lenine, em Nowa Huta

(continua)  

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(1) Para os mais esquecidos e mais novos ,recordo que POUP são as iniciais do Partido Operário Unificado Polaco, o nome por que respondia o partido comunista pró-soviético polaco.

 

Qui | 27.11.08

Uma fortaleza chamada Nowa Huta

Jorge Fiel

O desenho de Nowa Huta, projectada para facilmente se transformar numa fortaleza inexpugnável

O capitalismo planificou, a partir do zero, cidades como Brasília e Camberra, concebidas para serem as capitais dos respectivos países. Já fui a Camberra (e gostei) e nunca fui a Brasília (mas gostava muito de lá ir)

O comunismo, versão URSS, planificou, a partir do zero, cidades como Nowa Huta e  Magnitogorsk (nos Montes Urais) para glorificar, "urbi et orbi", a superioridade socialista. Já fui a Nowa Hutta (e achei piada, a mesma piada que acho quando vou ao Jardim Zoológico) e nunca fui a Magnitogorsk (e não faz parte dos meus planos ir lá).

Nowa Huta é duplamente bastarda. É uma filha bastarda do pós guerra e de Cracóvia. Como nada me move contra os bastardos, investi uma tarde da minha estadia na terra dos polacos a visitá-la.

Não me arrependi, se bem que não tenho a certeza se, depois da noite cair, seria muito seguro andar a passear-me pelas suas avenidas largas e densamente arborizadas.

A cidade ideal para os comunistas polacos, foi desenhada a pensar num eventual aquecimento da Guerra Fria e daí a largura dos seus arruamentos (que visava impedir o alastramento de incêndios provocados por bombardeamentos) e a imensa arborização (que visava absorver parcialmente os danos de uma explosão nuclear).

Destinada a ser uma amostra da nova cidade socialista, Nowa Huta foi desenhada com o cuidado de poder ser facilmente transformada numa fortaleza inexpugnável em caso de invasão pelas tropas imperialistas da Nato.

A sua arquitectura majestosa impressiona, mas é curiosa aos olhos de um leigo como eu a grande afinidade que liga o gosto nazi, soviético e do Estado Novo português.

A entrada do Parque Gorki, em Moscovo, o que resta da arquitectura nazi, em Berlim, o Palácio da Justiça, do Porto,  e Nowa Huta, em Cracóvia,  apresentam-se perante os meus olhos como variantes de uma mesma escola de arquitectura.

Já a arquitectura fascista (estou a lembrar-me por exemplo da estação Termini, em Roma), apesar de comungar do mesmo gosto pela imponência e grandiosa monumentalidade, deixa-nos ficar na boca um sabor bem mais moderno e atraente.

Aspecto de Nowa Huta

 

(continua)

 

Qua | 26.11.08

Piotr Ozanski, furioso assentador de tijolos

Jorge Fiel

Piotr Ozanski, num retrato feito em 1950 por Erwin Czerwenka

À epopeia da construção da proletária Nowa Huta não podia faltar um herói stakhanovista, a patranha inventada pelos soviéticos para tentar convencer o pessoal a matar-se a trabalhar – e, ainda, compor, para consumo externo, a imagem da URSS como um paraíso socialista (cruzes canhoto!).

Mal comparado, o stakhanovismo é uma espécie de fenómeno do Entroncamento (1) à moda soviética.

Alexey Grigoryevich Stakhanov, o herói acidental escolhido pelo regime soviético para glorificar o trabalho, tinha 29 anos e era mineiro na obscura localidade de Kradiyivka, no Leste da Ucrânia, quando emergiu do anonimato directamente para a capa da Time Magazine de 16 de Dezembro de 1935.

Este salto gigantesco, bem maior do que o que valeu a medalha de Ouro a Nélson Évora nos Jogos Olímpicos de Pequim, deve-se ao facto de lhe ter sido creditada a extracção de 102 toneladas de carvão em 5h45 minutos, ultrapassando em 14 vezes a quota fixada pelos planificadores.

O nosso Stakhanov não se ficou por aqui. Nestes casos, convém sempre haver uma confirmação – reparem que, em Fátima, a Virgem Maria não se limitou a aparecer uma vez aos pastorinhos.

Um pouco mais tarde, o herói soviético da batalha da produção atirou-se para o chão (com isto quero dizer que se esmerou), e a acreditar na propaganda do PCUS (2) terá extraído 227 toneladas num só turno!

Para ele foi melhor que lhe ter saído o jackpot no Euromilhões. Rapidamente foi promovido a engenheiro, passou a dirigir minas (o que, convenhamos é muitísimo melhor do que escavá-las), libertou-se da lei da morte dando o nome à cidade que foi o cenário das suas alegadas proezas (Kadiyiva foi rebaptizada Stakhanova), deu origem a um substantivo, recebeu numerosas condecorações (entre as quais duas ordens Lenine e uma da Ordem da Bandeira Vermelha), foi proclamado Herói Socialista do Trabalho e acabou deputado ao Soviete Supremo.

Que mais um homem pode ambicionar na vida?

Pois, na construção de Nowa Huta, foi solicitado aos polacos que arranjassem um herói stakhanovista e o feliz contemplado foi Piotr Ozanski, a quem foi creditada a façanha de ter assente 33 mil tijolos num dia.

Basta seguir o sábio conselho do camarada Guterres para verificar que é peta. Mesmo que o Piotr tivesse assente tijolos durante 24 horas seguidas, isso equivaleria a 1.375 tijolos por hora e a 23 tijolos por minutos. Até me apetece dizer uma asneira (3).  

O camarada Stakhanov em plena acção

 

(continua)

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(1) Nos anos 50 e 60, os correspondentes do Século e Diário de Notícias no Entroncamento rivalizavam na apresentação aos leitores destes dois diários lisboetas de aberrações produzidas pela Natureza. A primeira destas aberrações terá sido uma abóbora com mais de 50 quilos que um comerciante local expôs na montra da sua loja. A partir daí foi sempre a subir e a delirar. Pepinos gigantes, galinhas com duas cabeças, tomates descomunais geminados – e assim por diante.

 

(2) Para os mais esquecidos e mais novo recordo que PCUS são as iniciais de Partido Comunista da União Soviética, a denominação que após a revolução de Outubro foi dada ao partido bolchevique.

 

(3) O Piotr Ozanski que vá assentar tijolos para o caralho!

 

Ter | 25.11.08

Como o valoroso camarada Stalin fracassou com estrondo na árdua tarefa de selar a vaca polaca

Jorge Fiel

O camarada Staline entre os membros do grupo folclórico Mazowsze, um belo exemplar do socialismo realista, esta pintura quadro de B.Borowski (1953)

Não é preciso ir à Polónia e passar dois meses a escrever, todos os dias, da viagem para perceber que os polacos estiveram para os comunistas soviéticos da mesma maneira que os gauleses irredutíveis para os romanos.

Se olharmos com alguma liberdade artística para a figura de Lech Walesa, poderemos até detectar uma data de parecenças físicas (a começar pelo bigode e ar bonacheirão) entre o herói do Solidarinosci e os pândegos Astérix e Obélix em boa hora inventados pelo Goscinny – e em má hora ressuscitados pelo seu colega Uderzo.

Se a aldeia no Norte da Gália, povoada por irredutíveis gauleses resistiu à romanização e às legiões de Júlio César com a ajuda da poção mágica produzida pelo druida Panoramix, os polacos resistiram à sovietização e às legiões de Stalin com a ajuda do ópio do povo – a religião católica.

Os gauleses empaturravam-se em poção mágica. Os polacos em missinhas. O resultado final revelou-se descoroçoante para o invasor, ao ponto do camarada Stalin (também ele proprietário de uma imponente bigodaça) ter dito que implantar o comunismo na Polónia era muito mais difícil do que por uma sela numa vaca.

O fracasso do Zé dos Bigodes na tarefa de selar a vaca polaca é particularmente visível no episódio da igreja de Nowa Huta (1).

Desconfiado (e com razão) da intelectualidade burguesa de Cracóvia, o Governo pró-soviético instalado em Varsóvia no pós-guerra logo tratou de mandar fazer ao lado uma cidade proletária, baptizada de Nowa Huta.

A decisão foi tomada a 17 de Maio de 1947, e logo começou a ganhar forma a nova cidade concebida para ser um modelo de realismo socialista a mostrar ao mundo, a ser o contraponto proletário e ateu à Cracóvia intelectual e católica.

A cidade, projectada para albergar cem mil pessoas, engoliu os melhores terrenos agrícolas dos arredores de Cracóvia a que está umbilicalmente ligada por uma linha de eléctrico.

A sua construção estava destinada a ser cantada como exemplo e cumpriu esse seu destino, apesar das histórias relativas ao facto de na pressa de ter a cidade pronta os corpos dos operários mortos durante a gigantesca empreitada terem ficado sepultados nas fundações –  uma solução que, convenhamos, tem tanto de cínica como de prática.

A 23 de Junho de 1949, era inaugurado, com a pompa adequada à circunstância, o primeiro bloco residencial de Nowa Huta.

 

Arka Pana, a igreja de Nowa Huta

(continua)

 

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(1) Desenhada para ser um bastião proletário, Nowa Huta tornou-se rapidamente um covil anti-comunista. A primeira grande reivindicação dos seus habitantes foi a construção de uma igreja – que as autoridades não tiveram outro remédio senão ceder. A igreja de Arka Pana lá está a recordar o fracasso de Stalin em Nova Hutta.

 

Seg | 24.11.08

Moscovo dá peidos pela piça (2)

Jorge Fiel

 

O passado abastece-nos o curriculum vitae mas, em determinadas circunstâncias, pode revelar-se bastante inconveniente e acarretar-nos uma data de chatices. Os polacos sabem perfeitamente de que é que eu estou a falar.

Lech Walesa é um moderno herói polaco, o operário dos estaleiros navais Lenine, em Gdansk, que fundou e liderou o movimento Solidariedade – a alavanca que derrubou o regime pró-soviético instalado em Varsóvia.

Esta história bonita de um Che Guevara de direita (1) conheceu um “happy ending” provisório, com Walesa a ser levado em ombros, nacional (foi eleito Presidente da República) e internacionalmente (foi laureado com o Nobel da Paz).

O problema é que em Junho desembarcou nas livrarias uma bomba com a forma de livro em que o pai da jovem democracia polaca é acusado de estar envolvido com a polícia secreta polaca. Dito por outras palavras, terá operado como agente e informador do regime comunista.

O país ficou em estado de choque, dividido entre os que acreditam e os que não querem acreditar. Mas dá para imaginar a convulsão.

Todos os democratas portugueses mergulhariam num crise existencial se fosse apresentado na Fnac um livro a acusar Otelo de ter ligações à Pide.

Todos os católicos se benzeriam (e ajoelhariam a rezar) se saísse um livro a acusar o papa João Paulo II de ter imitado o Fausto e vendido a alma ao Diabo.

Mas há mais bocados do passado que estão a atormentar o dia a dia dos polacos. Para se redimir do tempo em que a Guerra Fria se travava entre os blocos militares Nato e Pacto de Varsóvia, a Polónia tem-se desdobrado em gentilezas com o Ocidente (em geral) e os Estados Unidos (em muito particular) afastando-se irreversivelmente do campo magnético de Moscovo.

Em 1999, deu-se o que seria impensável dez anos antes. Varsóvia, a cidade que deu o nome ao Pacto, trasladou-se de armas e bagagens para o campo do antigo inimigo e aderiu à Nato.

Não satisfeito com esta adesão, que deixou Moscovo a dar peidos pela piça (2), Varsóvia decidiu elevar o seu esforço para agradar ao Tio Sam ao ponto de autorizar os norte-americanos a instalarem no norte do país, na região de Gdansk,  o escudo anti-míssil destinado a interceptar os mísseis russos.

Como é óbvio, Moscovo não achou graça nenhuma a esta deferência polaca para com o seu amigo americano e, a título de primeiros preparos, informou o Mundo que doravante a Polónia passaria a se o alvo preferencial das suas ogivas nucleares.

Mas não é só o passado mais recente que está a intrometer-se no presente polaco.

Uma outra caixa de Pandora acaba de ser aberta. Estão pendentes 89 mil conflitos relativos à propriedade de casas, terrenos, fábricas e outros bens confiscados aos judeus pelos nazis - e, depois, aos nazis pelos comunistas.

O busílis é que o novo poder pós-soviético não teve o cuidado de parar esta espécie de comboinho e achou por bem considerá-los estatais e dispor deles a seu bel prazer.

Não concordando com a aparente linearidade deste processo, o lóbi judaico pressionou o Congresso dos Estados Unidos, que aprovou uma resolução (3) sugerindo a Varsóvia que pague aos herdeiros dos legítimos proprietários uma soma equivalente a 20% do valor actual dos bens confiscados durante a II Guerra Mundial.

Sucede que, mais coisa menos coisa, o que está em causa é o Tesouro polaco desembolsar 40 biliões de dólares. Isto se não quiser aborrecer o seu novo amigo americano.

 

(continua)

 

………..

(1) A imagem que eu arranjei também não seria muito feia, se não se desse o caso do aspecto altamente azeiteiro do bigode do Lech.

 

(2)  A expressão não é elegante, reconheço, mas emana dela uma sonoridade e força que, no meu entender (que, como sabem, não é modesto), torna razoável o seu uso.

 

(3)  Media que, à primeira vista e no mínimo, atropela os princípios da Conferência de Bandung sobre a coexistência pacifica entre os povos e a não ingerência nos assuntos internos de outros Estados.    

 

Dom | 23.11.08

Pedófilos castrados e um descarrilamento

Jorge Fiel

 

O pioneirismo polaco não se esgota na obrigatoriedade dos carros andarem com os faróis acesos durante o dia.

Apesar do regime de Varsóvia não ter sido abalado por qualquer episódio trágico-cómico da dimensão do inenarrável Processo Casa Pia, o enérgico primeiro ministro Donald Tusk (1) enviou para o parlamento polaco uma lei que, a ser aprovada, submeterá a uma impiedosa castração química todos os pedófilos condenados.

Tusk optou por esta medida radical e pioneira (2) após ter sido tornado público o caso de incesto cometido por um homem de 45 anos, de Grodzisk, que abusou sexualmente da filha, de uma forma continuada, ao ponto de produzir dois filhos/netos.

A esmagadora maioria dos polacos (79%) apoia a iniciativa de Tusk. Os belgas e os austríacos devem andar roídos de inveja…

Se Tusk e o piloto de Fórmula 1 Robert Kubica (que subiu ao lugar mais alto do pódio no Grande Prémio do Canadá) enchem de orgulho o peito dos polacos, o mesmo não se poderá dizer a propósito do Euro 2012, em futebol, que era suposto ser uma organização conjunta da Polónia e Ucrânia.

Kiev parece estar prestes a ficar fora da corrida e Varsóvia não anda muito longe. A presença do FC Porto na Champions deixou de ser a principal fonte de dores de cabeça de Michel Platini, quando vários dirigentes da federação polaca de futebol enfrentam sérias acusações de corrupção – e a honestidade de Michal Borowski, o homem forte que dirige a construção do novo Estádio Nacional, está a ser submetida a um rigoroso escrutínio.

Mas não é só no futebol que o vento não está a soprar de feição para os lados da Polónia.

Hanna Gronkiewicz, a presidente da Câmara de Varsóvia, já anunciou, urbi et orbi, que a segunda linha de metro da capital não estará operacional em 2012, a tempo do Euro. Motivo: a proposta mais baixa apresentada para esta empreitada era o dobro dos dois biliões de zlotys (cerca de 660 milhões de euros) que eram a base do concurso público (3) 

Ainda no capítulo dos transportes, o frágil ego dos polacos sofreu um rude golpe com o descarrilamento do comboio que fazia a viagem inaugural da linha Varsóvia-Lodz, que tinha sido apresentada como uma obra prima da engenharia polaca.

(continua)

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(1)  O cavalheiro com aspecto e ideias razoáveis que substituiu o bolorento e pândego irmão gémeo do Presidente da República, com inegável vantagem para a democracia polaca e para a imagem que o pais projecta no Mundo.

 

(2)  A Polónia será o primeiro país do Mundo a tornar obrigatória a castração química dos pedófilos. Na Inglaterra, Dinamarca, Suíça, Suécia, Alemanha e oito estados dos EUA a castração química de pedófilos condenados pode ser aplicada a solicitação dos próprios.

 

(3)  Ora aqui está uma bela oportunidade para os empreiteiros portugueses com experiência neste tipo de obra!

 

Sab | 22.11.08

Vamos andar todos com os faróis acesos

Jorge Fiel

Este BMW só está com as luzes apagadas por estar estacionado

O falecido trotsquista belga Ernest Mandel, autor de uma imprescindível “Iniciação à teoria económica marxista”, formulou a teoria do desenvolvimento desigual e combinado.

Esta teoria de Mandel explica porque é que a Turquia, apesar de consideravelmente mais pobre e atrasada do que a Alemanha, tem uma infra-estrutura de telecomunicações muito mais avançada.

ATurquia estava na época das telefonistas a manipularem as cavilhas para encaminhar as chamadas telefónicas quando decidiu investir na modernização e digitalização da rede.

Ankara comprou o mais sofisticado sistema da Siemens, queimando uma série de etapas intermédias e apetrechando-se com uma infra-estrutura de telecomunicações mais avançada do que a alemã, que era da geração anterior (seria idiota Berlim estar permanente a investir no último grito tecnológico).

Vem tudo isto a propósito de alguns aspectos em que a Polónia está claramente na vanguarda europeia, numa demonstração inequívoca da justeza e vitalidade da teoria de Mandel.   

Seja dia ou seja noite, faça chuva ou faça sol, seja Verão ou seja Inverno, há mais de um ano que estão sujeitas a uma pesada multa as viaturas que circulem nas estradas e ruas polacas sem terem os médios acesos.

Ora a Comissão Europeia está neste preciso momento a ultimar legislação que, em nome do incremento das condições de segurança nas estradas, alastrará aos outros 26 países da União a obrigatoriedade polaca de todos os carros usarem luzes de circulação diurnas (DLR - Daytime Running Light).

Bruxelas acha que a DRL aumenta a visibilidade dos veículos motorizados e por isso propõe que a partir de 7 de Fevereiro de 2011 (ou seja faltam pouco mais de dois anos para a entrada em vigor desta resolução) esteja obrigatoriamente instalado em todos os veículos de passageiros novos, bem como nos comerciais ligeiros (1), um dispositivo que faz com que os faróis acendam sempre que se roda a chave na ignição.

Ou seja, a partir de 7 de Fevereiro de 2011 andaremos todos de luzes bem acesas. Como os polacos.

(continua)

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(1) Os camiões e autocarros beneficiarão de um prazo mais alargado (Agosto de 2012).

 

Sex | 21.11.08

Uma recordação verdadeira ou postiça?

Jorge Fiel

 

“No meu tempo...”  Como estou numa fase razoavelmente adiantada do processo de transformação em antepassado, são cada vez mais frequentes as frases que começo com estas três palavrinhas: “No meu tempo…”

Não façam confusão. Apesar de haver de quantidade alarmante de pessoas que teimam em tratar-me por senhor , não sou dos que dão razão ao Baudelaire, que odiava “o fatal obscuro do progresso”.

Nunca me apanharão a dizer que, no meu tempo, o açúcar era mais doce, a água mais aquosa, o ar mais arejado – ou que a 4ª classe valia pelo menos tanto como o actual 12º ano.

Mas reconheço não ser raro dar comigo a dizer “ainda sou do tempo em que..” .Quando eu estiver neste registo, a única coisa que peço aos meus amigos é o subido favor de não me interromperem porque, como toda a gente sabe, para os velhos a memória é como uma pilha de porcelanas – se se tenta tirar um prato do meio, dá asneira e a coisa parte-se toda por aí abaixo.

Eu ainda sou do tempo em que era muito provável apanhar piolhos nas matinées duplas do Carlos Alberto,  dois filmes (muito cortadinhos por sinal), pelo preço de um -  um dois em um, que era um conceito muito inovador e avançado para a a época (o verdadeiro avant la lettre)..

Eu ainda sou do tempo em que havia dois intervalos no cinema. O primeiro a separar as Actualidades e “previews” do início do filme. O segundo a partir a fita ao meio, um acto que hoje não hesito em qualificar como criminoso, mas que à época dava bastante jeito para puxar umas passas e tentar engatar uma pequena.

Alto! Eu escrevi Actualidades? Actualidades ao jeito de documentários noticiosos, a preto e branco, sob o título genérico Assim vai o Mundo?

Chego aqui e plisso. Fico na dúvida. Isto de eu, nascido a 30 de Maio de 1956, ter ido ao cinema e passarem Actualidades será uma recordação verdadeira ou postiça?

Pois, confesso que fartei-me de espremer as meninges e não achei uma resposta. Se alguém a tiver, peço o favor de a partilhar comigo (desde já o meu muito obrigado, pois não sei como procurar no Google a resposta a esta inquietação).

Para o caso, o que interessa é que quando estou de visita a um país, não me preocupo só com a sua história, património, ideias, costumes, gastronomia e esplanadas, mas também com os assuntos que preocupam os indígenas – as actualidades.

Pelo que, para encerrar uma semana em que a atmosfera sombria dos campos de morte de Auschwitz e Birkenau pairou sobre esta Lavandaria (onde tudo pode acontecer, com este absurdo de eu passar dois meses a  escrever todos os dias, sem excepção, sobre a Polónia), vou confeccionar uma breve resenha aqui vai uma breve resenha do que dominavam a conversa dos polacos quando eu andava pelo pais deles.

(continua)

 

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