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Lavandaria

por Jorge Fiel

Lavandaria

por Jorge Fiel

Ter | 30.09.08

O saudoso Américo Tomás e a minha primeira visita à Polónia desde a última vez que lá fui

Jorge Fiel

 

Nas suas viagens pela nossa terra, Américo de Deus Tomás, o último presidente da República no tempo da Outra Senhora, tinha por hábito dedicar a abertura – bem como parte substancial dos seus discursos - ao desfiar de recordações de anteriores passagens pelo lugar onde estava a abusar da palavra.

O velho contra-almirante era bastante rigoroso neste capítulo, como se pode aquilatar em três singelas citações de orações por ele pronunciadas:

“É a primeira vez que estou cá, desde a última vez que cá estive”.

“Hoje visitei todos os pavilhões, se não contar com os que não visitei”.

“Comemora-se hoje em todo o país uma promulgação do despacho número 100 da Marinha Mercante Portuguesa, a que foi dado esse número não por mero acaso, mas porque ele vem na sequência de outras 99 anteriores promulgações”.

Com a devida vénia e homenagem à sabedoria do infeliz contra-almirante (quem viu fotografias da sua Gertrudes, um susto de mulher, não pode estranhar os sentimentos póstumos de pena e compaixão que ele me inspira), decidi imitar-lhe o artifício retórico neste arranque de um fastidioso relato da minha recente viagem de férias à Polónia, que decorreu entre Varsóvia e Cracóvia (com uma breve, mas frutuosa, incursão final a Wroclaw), de 6 a 15 do mês de Setembro.

Esta minha visita à Polónia foi a primeira desde a última vez que lá fui, e permitiu-me visitar todas as cidades,  se não contar com as que não visitei.

Esta minha viagem à Polónia não é a quarta por mero acaso, mas sim porque vem na sequência de três anteriores viagens a este belo país da Europa Central.

Mas foi a primeira vez que lá fui de férias (ou seja com as despesinhas a correram por minha conta), no Verão e com algum tempo livre para flanar.

A primeira vez foi há cinco anos, e viajei a convite do grupo RAR, integrando um grupo restrito de jornalistas (confesso que já começo a sentir saudades desses tempos em que a minha presença era desejada nesses grupos seleccionados) , convidado a voar até  Lodz  (com escala em Varsóvia) num moderno e ultra-confortável Falcon, na companhia de João Nuno Macedo Silva (presidente da RAR), Virgilio Folhadela (administrador da RAR)  e o ministro da Economia Carlos Tavares – bem como da minha boa e preclara amiga Dalila.

O objectivo último (do meu ponto de vista, já que ao olhar dos pagantes tratava-se do primeiro) da viagem desta distinta embaixada era inaugurar a nova fábrica de embalagens da Colep (grupo RAR) em Lodz, cidade cujo nome os polacos pronunciam Udje – ao arrepio das nossas mais honestas (se bem que ignorantes…) expectativas.

Como não tenho segredos para as preclaras e preclaros, passo a explicar sucintamente a alquimia de Lodz em Udje.

O “L” inicial tem um traço na haste (tal como o eléctrico da linha 7 que seguia para o Amial) e por isso em polaco lê-se “u”.

O “o” é acentuado  (“ó”)  pelo que se pronuncia “u”. Para terminar. “dz” diz-se “dje”.

Deixo-vos um conselho final, a propósito do zloty, a moeda polaca (a valorização a sua cotação face ao euro, nos tempos mais recentes, deixa o Governo de Varsóvia pouco entusiasmado com a perspectiva de aderir à moeda única).

Como o “l” de zloty está decorado com um traço, se não quiser exagerar na figura de parvo que faz perante os locais, pronuncie “zuóti” e não zlóti”.

Mais vos informo que com um euro se compra actualmente 3,4  “zuótis”.

(continua)

 

PS. Faz hoje anos o meu primo Fernando, que está emigrado em Cracóvia e foi a principal razão para esta minha excursão à Polónia. Aproveito esta oportunidade para lhe mandar um abraço de parabéns, sem gastar dinheiro em chamadas ou SMS (o roaming ainda está pela hora da morte) - e para lamentar publicamente que seja a primeira vez, desde a última (que não me lembro ao certo quando foi) que ele comemora aniversário sem eu estar por perto a desgraçar-lhe os champanhes e espumantes brutos de excelente qualidade que ele sempre faz questão de pôr em cima da mesa.. 
Seg | 29.09.08

Da necessidade de educar o flato

Jorge Fiel

 

Há um verdadeiro catálogo de nomes para designar o fenómeno de libertação de gases pelo ânus. Alguns cultos e educados - flatulência, meteorismo, aerofagia… - e outros mais rudes que penso ser desnecessário elencar, dado serem do conhecimento geral.

 

Estudos médicos recentes garantem que cada um de nós liberta, em média, litro e meio de gases por dia. Confirma-se por isso tratar-se de um assunto que toca a todos, uma insofismável verdade que Né Ladeiras imortalizou na faixa «Não há cu que não dê traque» num disco da Banda do Casaco.

 

Nunca na minha vida, nem na adolescência, nem na tropa, participei naquelas brincadeiras de rapazolas, nos concursos em que o vencedor era o que mais vezes conseguia expelir ruidosamente gases pela retaguarda.

 

Sempre soube lidar de forma educada e contida com a minha própria flatulência, abstendo-me de emitir os flatos em público. Mas não escondo que, no recato da casa de banho, tenho o hábito de preceder a satisfação das minhas necessidades fisiológicas de carácter sólido de uma generosa salva de traques. Esta libertação de gases deixa-me sempre com uma agradável sensação de alívio.

 

O ar que evacuamos por cima (arrotos) ou por baixo tem essencialmente duas origens. Ou é engolido (neste particular, o hábito de mascar pastilha elástica é fatal) ou é produzido internamente pelo nosso organismo, através da fermentação de bactérias que habitam o intestino grosso.

 

Se tem dificuldades em educar a sua flatulência, abstenha-se em absoluto de ingerir toda e qualquer variedade de feijão, seja ele frade, manteiga, preto ou vermelho. E não tenha vergonha de em privado libertar-se dos gases. A flatulência não é uma doença, mas a acumulação dos gases provoca dores perfeitamente evitáveis.

 

PS. Com este pequeno texto, que mão amiga impediu maçasse (ou, quem sabe?, chocasse…) os leitores do Expresso, encerro o já longo ciclo dedicado às minhas doenças, que num raro momento de lucidez decidi não enriquecer com inéditos – pelo menos para já. Passo a um ciclo polaco. Pode ser que volte um dia com novas doenças.

 

Dom | 28.09.08

Sim, eu ressono!

Jorge Fiel

 

 

Não o digo por testemunho directo. Nunca me dei ao trabalho de adormecer com um gravador ligado para confirmar o que me garantem pessoas que me são bastante próximas. Eu ressono. Não tenho orgulho nisso. É embaraçante. Evito adormecer em comboio e aviões, com o medo de acordar com toda a gente a dirigir-me olhares reprovadores.

 

A culpa é de uma malformação anatómica. A idade, o excesso de peso e a hipertensão não ajudam. Mas o problema é que nasci com o nariz muito mal dividido. Uma das minhas narinas é surda – praticamente não funciona.

 

Há uns cinco ou seis anos, estive a um pequeno passo de resolver o problema. Levei o meu filho Pedro ao otorrino, onde confirmei que se ele não ouve o que lhe dizemos à primeira não é por razões médicas mas antes porque está quase sempre, na lua - o que até se compreende aceite, já que ser astronauta é o seu sonho de criança.

 

No final da consulta, tentei uma espécie de «dois em um» e perguntei ao médico se ele não se importava de me inspeccionar as fossas nasais. No final de um rápido exame, o simpático dr. Pantalião apresentou-me duas soluções alternativas: a clássica (ser operado) ou um tratamento em duas sessões que me poderia aliviar das periódicas e infernais dores de sinusite e da apneia do sono  -que é como as pessoas instruídas chamam ao ressonar.

 

O  tratamento consistiu essencialmente na administração de choques eléctricos no interior de cada narina. No final, havia no ar um ligeiro cheiro a carne assada (era minha..) e o meu nariz expelia uma pequena nuvem de fumo em tudo idêntica à que, nos filmes, sai dos canos do revólver depois do tiro.

 

Nos primeiros dias a seguir aos choques, uma incómoda incontinência nasal (diferente, portanto, da do dr Basíilio, da API)  obrigou-me a despesas suplementares com a  limpeza a seco de gravatas. Mas valeu a pena, porque nunca mais tive dores de sinusite, - apesar de continuar a ressonar, ou, se  preferirem, a sofrer de apneia do sono.

 

Sab | 27.09.08

É melhor ter duas pedras na vesícula do que uma no sapato

Jorge Fiel

 

Sempre tive uma atitude tolerante relativamente ao prazo de validade dos alimentos. Para mim, um iogurte só está fora de prazo quando a tampa está abaulada, ameaçando rebentar a qualquer momento.

 

Por isso, quando acordei a meio da noite com uma desagradável sensação de enfartamento, atribuí logo as culpas daquele meu lamentável estado uns tomates secos ao sol que tinha consumido ao jantar e estavam num frasco aberto no meu frigorífico há largas semanas.

 

Como não tinha posição para estar na cama, ou sentado a ler ou a ver televisão, optei por andar. Fui e vim de S. João do Estoril a Cascais a pé, pelo paredão à beira mar. O passeio é muito bonito mas não derrotou a má disposição.  

 

Com o passar dos dias, e uma dieta forçada, os sintomas foram aliviando, mas não completamente. Até que no fim de semana, no Porto, tive a sorte de encontrar, em casa do meu primo Fernando, o meu amigo Rui Ponce Leão, provavelmente o médico mais adequado para tratar de mim já que antes de se dedicar à Medicina do Trabalho se especializou em Medicina Legal.

 

 O Rui foi rápido no diagnóstico. Ilibou imediatamente os tomates secos ao sol. Qual intoxicação alimentar, qual carapuça! Eu padecia era de uma vulgar crise na vesícula. Receitou-me dois medicamentos milagrosos, que me devolveram o bem estar. Mas, pelo sim pelo não (quando se tratar da saúde de amigos e clientes, o Rui prefere usar cinto e suspensórios), aconselhou-me a fazer uma ecografia à vesícula.

 

Apesar da indisposição ter passado, eu portei-me relativamente bem. Quatro meses depois lá fui à Cuf da Infante Santo fazer o exame, que revelou a presença, hostil, de duas pedras na minha vesícula.

 

Mal soube da existência das pedras, o meu amigo e cirurgião Eurico Castro Alves logo se prontificou a extrai-las, o que vai acontecer mais mês menos mês. De todo este episódio, retiro duas conclusões:

 

a)  Quem tem amigos médicos não morre sem cuidados;

 

b)  É melhor ter duas pedras na vesícula do que uma no sapato.

 

 

Nota:

Esta história teve um final feliz. Já fui aliviado das pedras na vesícula

 

Sex | 26.09.08

A derrota do peixe aranha

Jorge Fiel

 

 

 

 

 

 

 

Tenho por hábito passar a última quinzena de Agosto de férias no Zavial, uma bela praia da Costa Vicentina que tem como único senão o facto de, frequentemente, na maré baixa, o seu areal ser habitado por nefastos peixes-aranha.

 

Nunca fui picado, mas no Verão passado reparei que o medo estava a vencer-me. Não raro abstinha-me de ir dar um mergulho, ou abreviava ao mínimo as caminhadas dentro de água, com medo da dolorosa picada que quase todos os dias vitima um banhista. Achei que estava a ser imprudente, a desafiar a lei das probabilidades, e que mais cedo ou mais tarde chegaria o dia de eu próprio ser picado.

 

Para contrariar o destino, resolvi rodear-me de todo o tipo de precauções – a preventiva e a curativa. Quem vai ao mar, avia-se em terra. Foi o que eu fiz.

 

Adquiri por oito euros, numa loja da rua principal de Sagres, uns elegantes e confortáveis sapatos de plástico preto, que passei a usar sempre desde que saio de casa para a praia até ao regresso e que, ao contrário do que eu temia, não perturbam os relaxados banhos de mar.

 

E na farmácia, equipei-me com um spray, o Parapic (5.5 euros), que quando aplicado no local da picadela acalma as dores. A minha vitória sobre o terror do peixe-aranha foi quase total.

 

Não só não fui picado, como ainda o comi um exemplar, grelhado, desta espécie que abusa da sua camuflagem natural para se dissimular na areia.

 

Apesar de estar um tudo nada ressequido (provavelmente esteve tempo demais na grelha), tive um enorme prazer em comer o peixe-aranha pescado pelo meu amigo Afonso Leite Castro e que mesmo depois de morto lhe provocou valentes dores e um inchaço brutal na mão, quando inadvertidamente se picou na barbatana do venenoso, na sempre delicada operação de retirar o anzol.

 

 

Qui | 25.09.08

A triste e dura realidade é que sou hipertenso e que muito infelizmente o trabalho não dá saúde

Jorge Fiel

 

134 mm a máxima e 86 mm a mínima. Era esta a minha pressão arterial quando comecei a redigir esta crónica. Quem o garante é o meu medidor caseiro de tensão arterial, um aparelho digital com um ar catita e chamado Tensoval. A triste e dura realidade é que sou hipertenso.

 

O facto de integrar uma imensa minoria – as estatísticas revelam que um em cada três adultos no Mundo são hipertensos – não me alegra. Não há a mínima dúvida de que ter uma pressão arterial elevada faz de mim um sério candidato a uma velhice avinagrada pela demência ou Alzheimer, isto no caso de não ser no entretanto fatalmente vitimado por um enfarte ou um AVC! Sou hipertenso, mas ando a tratar-me e a aquisição do aparelho medidor insere-se nesse combate.

 

Diariamente anoto as medições no meu caderninho de bolso Clairefontaine quadriculado. Ontem, por exemplo, acordei às 7h30 com 137/93. Duas horas depois, após o meu jogging matinal na Foz, tinha 122/84. E por volta das 20h00, no regresso a casa, estava nos 142/96.

 

A coisa assim escrita até nem parece grave. É aceite que os 140/90 são o patamar da hipertensão. O problema é que estes valores são conseguidos à custa de dois comprimidos diários, um de Dilbloc 25 e outro de Co-Diovan Forte, prescritos pelo dr Nogueira da Silva, do Hospital de Santa Marta, que pacientemente me vigia desde que eu fui internado com uma arritmia cardíaca.

 

Deixei de fumar, reduzi para dois cafés o consumo diário de cafeína, dispenso bem o sal e os doces, e retomei o hábito de fazer regularmente exercício físico. Mas não há meio de abater o excedente de dez quilos que transporto. E não resisto ao presunto, nem a um manchego bem curado ou a um ilhas picante, acompanhados por pão escuro e vinho tinto.

 

E, como não tenho pais ricos, nem me saiu o Euromilhões, não consigo evitar o stress do trabalho. 145/97 acusa agora o Tensoval. Quem é que disse que o trabalho dá saúde?

 

Qua | 24.09.08

Para combater a insónia use e abuse do infalível método do choque térmico (ou dos pés frios)

Jorge Fiel

 

Por norma, durmo como um bebé. Mas quando sofro de insónias tenho uma receita para as vencer que se tem revelado infalível e eu baptizei como o Método do Choque Térmico.

 

Devo as bases da elaboração deste meu método a uma leitura cuidada da magnífica reportagem da Maria João Avillez sobre os últimos dias de Sá Carneiro, onde esta minha colega revela que, quando não conseguia conciliar-se com o sono, o falecido primeiro ministro ia à varanda apanhar um pouco de frio (a campanha eleitoral foi no Inverno de 1980).

 

Esqueça a contagem dos cordeirinhos. Nem sequer pense em ficar a dar voltas na cama, se não consegue aceder aos domínios de Morfeu. Levante-se e vá apanhar frio. Quando regressar à cama é tiro e queda. Embalado pelo calor do edredão, vai adormecer como um anjinho, enquanto o diabo esfrega um olho.

 

Há coisa de dois meses, vim a saber que o Método do Choque Térmico tem outras aplicações para além do combate à insónia.

 

Numa notável entrevista radiofónica, José António Saraiva revelou que boa parte dos seus golpes de génio ocorrem desde que se deita na cama até ter os pés quentes. E deu como exemplo da fertilidade intelectual de que é inundado neste período a escolha do nome (Sol) para o seu novo semanário.

 

Provavelmente a invenção do saco de plástico como acondicionador do Expresso aconteceu nesse mesmo lapso de tempo, quando o meu antigo director aquecia os pés frios.

 

Claro que se é casado, ou por qualquer outra razão partilha a cama com alguém (o que é estúpido, porque dorme-se melhor sozinho que acompanhado).tem de se rodear de alguns cuidados para prevenir eventuais efeitos perniciosos e secundários do Método do Choque Térmico.

 

Uma noite, no regresso à cama, estava tão gelado que evitei todo o contacto físico com a Isabel. O problema foi que ela se voltou na cama, pôs a mão em cima de mim e acordou sobressaltada - aterrorizada pela perspectiva de eu me ter tornado num cadáver.

 

Ter | 23.09.08

Os Moody Blues e a minha hepatite juvenil

Jorge Fiel

 

As canções ganham vida própria. Escapam aos autores e intérpretes. Nós apoderamo-nos delas e incorporámo-las num código pessoal e intransmissível de memórias e sensações, de que elas são a chave – o Abre-te Sésamo.

 

Sempre que ouço o Lola, dos Kinks, vejo os caracóis da Lola, uma namorada de Verão que tive em Gondomar – e que era 100% mulher, ao invés da dos Kinks, que «walked like a woman and talked like a man». O Ser Poeta (Perdidamente), dos Trovante, é uma ligação directa aos tempos de paixão pela Isabel. E os Moody Blues recordam-me os dois meses da Primavera de 1970 em que estive preso à cama, combatendo uma hepatite A com doses industriais de repouso.

 

Tinha 13 anos. Os sintomas não enganavam. As minhas feições orientais, que me valeram alcunha de «Chinês» na escola primária do Campo 24 de Agosto, estavam acentuadas pelo amarelo da icterícia. E o chichi trocara a palidez habitual por uma tonalidade carregada lembrava o vinho do Porto.

 

O diagnóstico foi rápido. O médico disse que eu padecia de uma desorganização da circulação biliar intra-hepática, e traduziu logo: eu tinha hepatite! Recomendou repouso e dieta rigorosa, atirando para o Índex todos os fritos, incluindo ovos e batatas.

 

Não podia sair da cama e devia mexer-me o menos possível. A música ajudou-me a atravessar esses dois meses de reclusão. Ao fim do dia ouvia na rádio o Página Um (que abria com o instrumental Page One dos Pop Five): e no resto do tempo estava confinado a um único LP que tocou vezes sem parar num pequeno gira-discos portátil, de baquelite verde, arrumado no chão do quarto. Era o «On the Thereshold of a Dream», dos Moody Blues. Ouvi-o tantas vezes, entre os meus lençóis brancos (mas que não eram de seda), que fiquei no limiar da loucura, contaminado por aquele rock sinfónico psicadélico. Ainda hoje, fico amarelo sempre que ouço «Lazy Day» ou «Send Me No Wine».

 

 

Seg | 22.09.08

Estou muito feliz por ser "fábrica descoberta"

Jorge Fiel

 

Para começar uma explicação. Na minha terra (o Porto) há o hábito de chamar “fábrica coberta” aos homens que não foram circuncidados.

 

Eu sou “fábrica descoberta”, desde os meus 13 anos, a idade em que os meus pais acharam conveniente mandar proceder à remoção cirúrgica do meu prepúcio – a pele que cobre a glande. Não foi cedo.

 

Não sei como é agora, mas eu andei quatro dolorosos dias com pontos dados no final da intervenção, quando a minha fábrica estava na sua dimensão mais reduzida.

 

As pilas são como as caixas de velocidades dos carros. Ou seja, têm várias velocidades, não é só andar para a frente e marcha atrás. Não se limita às caricaturais posições de descanso, em que está perpendicular ao solo, e activo, em que está orgulhosamente perpendicular ao corpo – e paralela ao solo. Há posições intermédias.

 

Ora como se sabe, o calor dilata os corpos… E como agravante, à época em que foi circuncidado, a moda de mini-saia estava no seu zénite, proporcionando estímulos visuais a que eu não me podia alhear e que me provocavam dores, com os pontos a rasgar a carne na minha fábrica.

 

Foram quatro dias para esquecer. Mas valeu a pena. É bom ser circuncidado. Falo pela minha experiência, confirmada por estudos científicos.

 

Uma equipa do Instituto Francês para a Investigação concluiu que os circuncidados têm menos 65% de hipótese de contrair sida, porque a circuncisão reduz o risco de transmissão do HIV ao melhorar as condições de higiene e diminuir a presença no local (a pila) de agentes infecciosos.

 

Uma outra equipa, da Universidade de Chicago, garante num artigo publicado no «Journal of the American Medical Association» que os circuncidados têm uma maior experiência sexual, masturbando-se e praticando sexo oral 1,4 vezes mais que os outros. Estou muito feliz por ser “fábrica descoberta”.       

 

Dom | 21.09.08

Estive na iminência de ser um repórter estrábico

Jorge Fiel

 

 

 

Nasci perfeitinho, com cinco dedos em cada mão e pé, como é desejável. O único senão eram os olhos, de origem tortos, desafiando a simetria. Enquanto o olho direito olhava para Oriente, o esquerdo divergia e, teimoso, virava-se para Ocidente.

 

Aprendi a andar e larguei as fraldas acompanhado por este meu defeito de nascença. Carinhosos e previdentes, os meus pais cedo consultaram uma oftalmologista, que os aconselharam a esperar que eu tivesse uns três a quatro anos para proceder à intervenção cirúrgica correctiva.

 

O problema de ser vesgo era essencialmente estético, mas também afectava a qualidade da minha visão. Tudo bem se olhasse em frente. Mas se tentasse olhar para a direita ou para a esquerda sem acompanhar o movimento dos olhos com a correspondente rotação do pescoço, via duas imagens sobrepostas, apesar de à época entrarem apenas dois líquidos na minha dieta – água da torneira e o leite que a leiteira deixava pela manhã numa bilha, à porta de nossa casa.

 

De miúdo, fiquei com o hábito de virar a cabeça para onde estou a olhar, o que me retira privacidade. Não consigo disfarçar o que me chama a atenção, ao contrário do que sucede com o normal dos estrábicos. Se já falou com um vesgo conhece perfeitamente a estranha sensação de conversar com alguém que não sabemos se está a olhar para nós ou para o lado.

 

Aos quatro anos fui à faca. A coisa correu bastante bem, tirando o facto de que não via rigorosamente nada quando acordei da anestesia. Berrei desalmadamente e não acreditei na explicação das irmãzinhas, que juravam que eu não via porque tinha os olhos tapados com umas palas. Só me calei quando elas, fartas de me ouvir, tiraram por momentos uma pala e eu confirmei que não tinha ficado cego.

 

O estrabismo foi corrigido, digamos que a 95%, pelo cirurgião, o dr. Castro Silva, que, do meu ponto de vista, deixa pelo menos dois grandes legados na sua passagem pela Terra. Deu-nos o seu filho Miguel, o «chef» do Bull & Bear, e impediu que eu viesse a ser conhecido como o repórter estrábico.

 

 

 

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