Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Lavandaria

por Jorge Fiel

Lavandaria

por Jorge Fiel

Qua | 26.09.07

Jornalismo de sarjeta na lavandaria

Jorge Fiel
A última coisa que Marques Mendes deseja neste momento é que a sua fotografia a preto e branco, emoldurada a madeira fina, seja afixada já no próximo mês na galeria dos retratos dos líderes, que acompanha a escadaria principal da sede do partido, na São Caetano à Lapa.

Isso significaria que teria perdido com Luís Filipe Menezes as eleições directas para a liderança do PSD, que se realizam na próxima sexta feira. É que a liturgia da afixação do retrato só se dá quando um líder é substituído.

Mas mesmo que perca as eleições internas, Mendes já conseguiu ser um dos mais duradouros líderes deste partido que em 33 anos já conseguiu preencher uma galeria de 13 retratos.

Dois anos e aproximadamente quatro meses é quanto dura, em média, um líder do PSD. Mas toda a gente sabe como estas médias são enganadoras. Esta é deformada pelo facto de Cavaco ter estado dez anos no lugar. O que quer dizer que na prática o prazo de validade de um líder laranja tem sido muito curto.

Eleito em Abril de 2005, Mendes está na liderança há 29 meses. Ultrapassou em um mês a média e, no que toca a longevidade no cargo, já deixou para trás nove antecessores: Pinto Balsemão (25 meses) Nuno Rodrigues dos Santos (13 meses), Fernando Nogueira (13 meses) Mota Pinto (onze meses), Meneres Pimentel (11 meses), Santana Lopes (não chegou a completar os nove meses), Sousa Franco (sete meses), Emídio Guerreiro (126 dias) e Rui Machete (68 dias).

Consumir 14 líderes em 33 anos de vida é uma estatística que dá a medida da irrequietude do PSD. No mesmo período de tempo, o PS governou-se com apenas seis lideres (Soares, Constâncio, Sampaio, Guterres, Ferro e Sócrates).

Um partido que devora líderes
Roupa para lavar - Jornalismo de sarjeta na lavandaria Sousa Franco, Nuno Rodrigues dos Santos e Mota Pinto: mortos em combate

O PSD é um partido que devora os seus lideres e que por isso preencheu muitas páginas da sua história com momentos dramáticos. Quatro líderes já morreram, três dos quais em circunstâncias pouco habituais. Ao contrário do que sucede com os seis lideres do PS que, apesar de todas as vicissitudes da política, ainda estão todos no mundo dos vivos.

Se Emídio Guerreiro, líder aos 75 anos, foi um caso sério de longevidade (viveu até aos 105 anos), o mesmo não se poderá dizer de Sá Carneiro e Mota Pinto. Sá Carneiro morreu jovem (45 anos) e como primeiro ministro, num desastre aéreo ainda envolto em mistério, em pleno frenesim de uma campanha presidencial que acabaria por perder.

Mota Pinto também morreu novo (49 anos), de ataque cardíaco, três meses depois de ter demitido da liderança após ter sido humilhado num Conselho Nacional pelos críticos do Bloco Central.

Sousa Franco viria a morrer a 9 de Junho de 2004, aos 62 anos, com a camisola do PS vestida. O terceiro líder do PSD era o cabeça de lista do PS nas eleições europeias e o coração dele não aguentou depois de ter estado no meio de uma rixa entre fracções rivais socialistas na lota de Matosinhos.

Com este cadastro, ninguém ficaria espantado se uma companhia de seguros decidisse aumentar o prémio do seguro de vida a um segurado seu que acabasse de ser eleito líder do PSD.

O PSD é um partido irrequieto que não dá vida fácil aos seus líderes, mas é também um partido generoso. Sousa Franco não foi um caso único. O PSD já forneceu um número não negligenciável de quadros ao PS - António Rebelo de Sousa, Guilherme de Oliveira Martins, Helena Roseta são três exemplos. E o próprio José Sócrates começou na JSD.

A este movimento não deve ser estranha a matriz fortemente socialista com que o partido nasceu, e que impregnou as suas bases programáticas.

No I Congresso, realizado a 23 e 24 de Dezembro no Pavilhão dos Desportos em Lisboa, foi decidido introduzir no programa um capítulo de "critica aos vícios do sistema capitalista" , a construção da sociedade socialista foi definida como um dos grandes objectivos e foi solicitada a inscrição na Internacional Socialista.

O PSD pode fazer sofrer os líderes (Cavaco terá sido a única e grande excepção) enquanto estão no seu posto, mas a verdade é que depois os sobreviventes ocupam, por norma, lugares de destaque.

Senão vejamos:

Durão Barroso é o presidente da Comissão Europeia.

Marcelo Rebelo de Sousa é o mais influente "opinion maker" português e está a lançar as bases para uma eventual candidatura presidencial.

Fernando Nogueira é um alto quadro do Millennium BCP sendo responsável pela operação do banco em Angola, onde reside.

Francisco Balsemão é o líder do mais poderoso grupo de Comunicação Social português.

Neste friso, apenas destoa um pouco o último líder com retrato na galeria de fotografias da São Caetano à Lapa. Pedro Santana Lopes é deputado e anda por aí, como prometeu no discurso de despedida feito há dois anos no Congresso do Pombal: "Não me despeço, não vou estar por aqui, mas vou andar por aí".

Sá Carneiro nunca teve a vida fácil
Roupa para lavar - Jornalismo de sarjeta na lavandaria Sá Carneiro tem um momento de glória nos II e IV Congresso (30 e 31 Outubro 76), em Leiria, onde o nome do PPD muda para PSD

Estava provavelmente escrito nas estrelas que este partido não iria ser fácil de domar e faria a vida negra aos seus líderes.

Sá Carneiro é a referência máxima do partido. Entra-se na sede e vemos o seu rosto decidido reproduzido num busto, em serigrafias e fotografias.

É claramente objecto de culto, o que se compreende, devido ao passado político anterior ao 25 de Abril, como deputado da Ala Liberal, e ao facto de ter sido o fundador, primeiro líder e primeiro primeiro-ministro do PSD - e ter encontrado uma morte trágica ao serviço do partido.

A evocação da sua memória num congresso pode criar um momento zen que talvez só encontro paralelo quando a águia Vitória sobrevoa o Estádio da Luz cheio em dia de grande jogo.

Mas apesar disso, os seis anos de liderança de Sá Carneiro foram anos intensos, duros e de sofrimento, marcados por vários e graves conflitos internos.

O partido que fundou nunca lhe deu vida fácil e isso repara-se logo à vista desarmada quando olhamos para a galeria de retratos da sede do PSD.

Os seis anos de liderança de Sá Carneiro foram cortados por duas lideranças: os 126 dias de interinato de Emídio Guerreiro (motivado pela sua ausência do pais por doença) e os sete meses do intervalo Sousa Franco.

O partido ainda mal sabia andar, e já o líder enfrentava uma onda de boatos internos relativos ao seu estado de saúde. Sá Carneiro padecia da doença de Krohn, o que obrigou a mudar-se para Londres onde recebeu tratamento médico. A boataria interna oscilava entre a morte certa (falava-se em cancro nos intestinos) e o uso da doença como álibi para se preservar afastando-se do pais no Verão Quente.

Logo no segundo congresso, no Teatro Avenida em Aveiro, em Dezembro de 1975, teve de fazer frente à revolta da linha progressista, agrupada na Plataforma Politica Social Democracia para Socialismo, liderada por Sá Borges, o primeiro vogal da Comissão Política Nacional.

O saldo final desta primeira grande refrega interna foi a deserção de 21 deputados à Constituinte, um grupo onde se contava o líder parlamentar (Mota Pinto).

A 7 Novembro de 77, irritado com as criticas internas à sua pessoa e ao ver-se minoritário na direcção do partido, Sá Carneiro bateu com a porta.

Achava que os seus companheiros de partido conciliavam com o PS e Eanes. Por isso, abandonou intempestivamente a reunião da direcção atirando com o cartão do partido para cima da mesa e declarando: "Não fazem como eu quero, vou-me embora". Iniciavam-se os sete meses consulado Sousa Franco.

Regressado ao partido em Julho de 78, Sá Carneiro ainda teve de sofrer a cisão do grupo das Opções Inadiáveis (que integrava 37 dos 73 deputados do partido), antes de atingir o período mais áureo da sua liderança, com a constituição da AD e a vitória nas legislativas. Estava prestes a tocar o céu quando morreu.

Balsemão de vitória em vitória até à derrota final
Roupa para lavar - Jornalismo de sarjeta na lavandaria Balsemão discursa no Rivoli, no IX Congresso (5 e 6 Dezembro 81)

Com o partido de luto, Balsemão, militante número um e membro do trio fundador (o outro sobrevivente era Magalhães Mota, que mais tarde abandonaria o PSD para se juntar ao PRD) foi a escolha óbvia.

Os tempos difíceis avizinhavam-se para Balsemão, que além de fazer a difícil digestão da morte de Sá Carneiro e a derrota nas presidenciais teve de enfrentar desde muito cedo numa coriácea oposição interna.

Em Junho de 1981, após escassos seis meses na liderança, o líder sentiu-se na obrigação de escrever um artigo no Povo Livre avisando os militantes de que "o poder não está em leilão e que os actos de indisciplina têm de acabar". No mês seguinte, Carlos Macedo, que já tinha infernizado a vida a Sá Carneiro (insinuou que ele tinha perfil de psicopata e saiu desabridamente de um Conselho Nacional a berrar "O Chico está maluco") ameaça demitir-se do Governo - ameaça que virá a concretizar.

Em Agosto, Eurico de Melo convida Balsemão a demitir-se: "A situação política exige a renúncia do poder dos que não são capazes de enfrentar uma situação e realizar uma solução global".

Reeleito em Dezembro pelo Congresso do Rivoli, o líder mas teve de ouvir as vozes de críticos que jogavam contra ele a memória de Sá Carneiro.

Como, por exemplo, a de Moura Guedes, líder parlamentar, que disse: "Eu sempre fui sá-carneirista. Sá Carneiro não conciliava com os inimigos. Combatê-los-ia".

Balsemão continuou o seu calvário (período que ficou conhecido por andar de vitória em vitória até à derrota final)  até que no Congresso de Montechoro, em Fevereiro de 1983, se viu forçado a entregar a liderança a uma troika constituída por Mota Pinto, Eurico de Melo e Nascimento Rodrigues.

A fechar o congresso do Montechoro, Leonardo Ribeiro de Almeida declarou que não tinha havido vencedores nem vencidos. A frase não convenceu os comentadores que na hora da fazer a contabilidade não tiveram dúvidas em dizer que Balsemão tinha sido batido e em falar do triunfo de Mota Pinto.

Mota Pinto com a chave do carro no bolso
Roupa para lavar - Jornalismo de sarjeta na lavandaria Mota Pinto no Teatro Circo em Braga (23, 24 e 25 Março 84), logo atrás dele um jovem Marques Mendes com penteado e óculos iguais aos do líder

Mota Pinto era senhor de uma história atribulada no partido onde estabelecera uma justificada reputação de conspirador. Foi um dos principais protagonistas da primeira cisão, em 1975. No entretanto, tinha sido primeiro ministro de um Governo de "inspiração presidencial" (o presidente era Eanes) combatido por Sá Carneiro, e regressara ao partido.

Levou o PSD de volta ao Governo, mas em posição subalterna (o PS ganhara as eleições e por isso Soares era o primeiro ministro), e logrou ser eleito líder no Congresso de Braga, em 1984, embora sob o fogo cerrado de um pequeno mas combativo grupo que dava pelo nome de Nova Esperança, que integrava três futuros líderes do partido (Marcelo Rebelo de Sousa, Durão Barroso e Pedro Santana Lopes), a militante número dois (Conceição Monteiro, que tinha sido secretária de Sá Carneiro), e ainda José Miguel Júdice e António Pinto Leite.

A partir dai foi sempre a descer. O PS acusava o PSD de estar com um pé no governo e outro de fora. E a oposição interna ao Governo de Bloco Central subia de tom e fazia-lhe a vida negra.

É debaixo desta chuva torrencial de criticas que Mota Pinto garante não estar agarrado ao poder e pretende demonstrar isso ao afirmar que andava sempre com a chave do seu carro no bolso.

A 10 de Fevereiro de 1985, 13 meses depois de ter sido eleito em Braga, Mota Pinto desiste e entrega o partido a Rui Machete. Morre quatro meses depois morre.

Dez anos de paz cavaquista
Roupa para lavar - Jornalismo de sarjeta na lavandaria Cavaco entronizado na Figueira da Foz, com Nogueira à direita e Eurico de Melo á esquerda. Dias Loureiro está um bocadinho mais longe…

O Congresso seguinte, o XII, convocado para o Casino da Figueira da Foz, é um dos mais míticos da história do partido. Reza o mito que João Salgueiro era o vencedor antecipado e que Cavaco Silva só se decidiu a ir à Figueira quando viu isso lhe seria útil porque aproveitaria para fazer a rodagem do carro que acabar de comprar.

Na realidade, as coisas não teriam sido bem assim. Cavaco, que cultivava a imagem de homem austero e ex-ministro das Finanças de Sá Carneiro, mantivera alguma visibilidade ao longo dos quatro anos anteriores ao emitir publicamente opiniões criticas, em sintonia com o seu amigo Eurico de Melo.   E é muito difícil não ver as impressões digitais da Nova Esperança espalhadas por toda a candidatura de Cavaco, que realmente foi à Figueira para disputar a liderança - aproveitando a deslocação para fazer a rodagem do carro.

Ao recolher 52% dos votos, Cavaco derrotou Salgueiro e iniciou a década mais pacifica dos 33 anos de história do menos dócil dos partidos políticos portugueses.

Sentado em cima de três vitórias nas legislativas e de duas maiorias absolutas, com as velas enfunadas pelos dinheiros de Bruxelas e pelo período de prosperidade sem precedentes que o país vivia, Cavaco foi dono e senhor do partido até que em 1995 desvenda o tabu e anuncia que se retira sem disputar as suas quartas legislativas.

A guerra pela sucessão estava aberta. O palco foi o XVII Congresso, no Coliseu dos Recreios em Lisboa, no terceiro fim-de-semana de Fevereiro de 1995.

Espectáculo em directo do Coliseu e Cristo desceu à terra
Roupa para lavar - Jornalismo de sarjeta na lavandaria Fernando Nogueira foi um líder para usar e deitar fora

O Congresso de 1995 no Coliseu foi o mais emocionante de todos os 28  que o partido já realizou. E olhando para trás, não é preciso usar óculos para constatar que estavam reunidas todos ingredientes para que assim fosse.

O partido tinha estado durante dez anos a ferver dentro de uma panela de pressão. Era certo e sabido que o Congresso de sucessão de Cavaco iria ser válvula de escape de tanta tensão acumulada ao longo de dez anos.

Era o primeiro congresso depois de Cavaco e após o nascimento das televisões privadas, ávidas de proporcionar espectáculo em directo para os seus milhões de espectadores.

O XVII Congresso do PSD, em que iriam combater pela liderança dois ministros e delfins de Cavaco, era espectáculo garantido. E foi.

Houve de tudo.

Bons protagonistas principais (Nogueira e Durão).

Excelentes actores secundários: Santana Lopes, que desistiu à última hora de apresentar lista para o Conselho Nacional, e Luís Filipe Menezes que abandonou o Coliseu de madrugada e a chorar, de mão dada com a mulher, depois de uma frase sua (acusando os barrosistas de serem sulistas, elitistas e liberais) ter incendiado o congresso que ficou à beira do confronto físico.

Bastantes rumores, o principal dos quais era o que garantia que era Durão e não Nogueira o candidato preferido de Cavaco.

E muito, mas mesmo muito "suspense". No final, Nogueira ganhou por 23 votos. Durão precisa de uma só frase ("Não esqueço, nunca esquecerei, os que acreditaram em mim") para explicar que voltará.

O partido fica partido ao meio.

Nogueira aguentou com a previsível derrota nas legislativas e durou 13 meses. Acabou substituído no Congresso do Europarque, em 1996, por um Marcelo que num sábado anterior tinha protagonizado as manchetes do Público (onde declarava em "on" que nem que Cristo descesse à terra seria candidato à liderança do PSD) e do Expresso (em que uma "fonte próxima" de Marcelo garante que ele se vai candidatar).

A paciência de chinês de Durão Barroso
Roupa para lavar - Jornalismo de sarjeta na lavandaria Marcelo conseguiu sempre 2/3 dos votos mas acabou sozinho

Durante três anos, Marcelo fez o que pode. Tentou desgastar Guterres e venceu três congressos, em que pediu e obteve sempre o apoio de 2/3 dos votos.

Durão Barroso acompanhava na sombra todo este frenesim do seu ex-companheiro da Nova Esperança, a quem concedia um apoio discreto.

Nos momentos de maior dramatismo de Marcelo, Durão sossegava o partido, garantindo que o PSD nunca ficaria órfão. O ex-maoista aguardava com paciência de chinês. Ainda não tinha chegado a sua vez.

Vítima da traquinice de Portas, Marcelo demitiu-se em 1999 quando a nova AD se esfumou. O caso não era para menos. Pouco tempo antes, ele tinha exigido ao Congresso do Coliseu do Porto uma maioria de 2/3 ao seu projecto de constituir a Alternativa Democrática com Paulo Portas, tendo em vista as legislativas de Outubro.

Um cherne que se revelou Gastão
Roupa para lavar - Jornalismo de sarjeta na lavandaria Durão Barroso, apadrinhado por Cavaco, soube esperar pela sua vez, que surgiu em Coimbra, a 2 de Maio de 99, no XXII Congresso

Durão sabia desde o agitado Congresso do Coliseu dos Recreios, em 95, que iria ser líder do PSD. Só não sabia quando. Foi em Maio de 1999, no XXII Congresso realizado em Coimbra no Pavilhão da Académica.

Quatro meses depois, perdeu com dignidade as legislativas para Guterres, numa campanha preparada em cima do joelho e sofrida (andou na estrada quase permanentemente com dores nas costas).

Apesar disso, o partido não lhe fez a vida fácil. Cinco meses volvidos sobre as legislativas, ainda não era presidente do partido há um ano, e teve de enfrentar dois opositores a disputarem-lhe a liderança no Congresso de Viseu (2000): Santana Lopes e Marques Mendes. Ambos haveriam de lá chegar. O primeiro esperou quatro anos. O segundo cinco.

Durão ganhou. Internamente teve aguentar a guerrilha permanente de Santana Lopes. A oposição interna só se acalma quando o PSD chega ao poder.

Mas fora do partido, a vida correu-lhe muito melhor do que ele podia esperar. Margarida Sousa Uva disse que se ele fosse um peixe era um cherne. Mais apropriado seria dizer que se fosse um personagem da Disney era o Gastão.

Depois de uma estrondosa vitória laranja nas autárquicas, Guterres demitiu-se reduzindo-lhe para metade os quatro anos previsíveis de travessia do deserto.

A seguir a ter ganho as legislativas, viu a liderança do PS de Ferro paralisada pelo processo Casa Pia. E após ter sofrido um pesada derrota nas Europeias de 2004, foi salvo por um providencial convite para ir presidir à Comissão Europeia.

Durão agarrou a oportunidade com ambas as mãos, deixando a chave do partido e do governo entregue ao seu ex-amigo Pedro, que acusara em congresso de ser "um misto de Zandinga e Gabriel Alves".

Um cometa chamado Santana

Finalmente, Santana Lopes cumpria o que, segundo ele, estava escrito nas estrelas. Mas cá na terra, começou a sentir o terreno a fugir-lhe debaixo dos pés.

Após uma atribulada passagem de cometa pelo Governo e pela liderança do partido, Santana recheou de imagens fortes o discurso de despedida feito em Abril de 2005: "Feriram-me com gravidade mas não me mataram".

Na linha de martírio que já tinha glosado antes: "Tenho as costas cheias de cicatrizes das facadas que levei. Não cabe lá mais nenhuma".

Rei morto, rei posto. Em Barcelos foi eleito, com 56% dos votos e a oposição de Menezes (43%).

Dois anos depois Marques Mendes e Menezes voltam a encontrar-se na disputa da liderança.

Menezes, tantas vezes derrotado e dado como morto, está a demonstrar que é como os gatos. Tem sete vidas. Só não se sabe quantas é que ele já gastou.

Jorge Fiel
Seg | 24.09.07

Três razões para detestar os Moleskines

Jorge Fiel
Tenho para mim que um bom profissional tem de ter elevadas estima e consideração pelas suas ferramentas de trabalho.

É no quadro da firme e fiel obediência a este princípio que não prescindo do uso quotidiano dos cadernos quadriculados Clairefontaine (9x14 cm, 96 páginas, made in France) e das esferográficas japonesas Muji ( ponta de 0,5mm, made in Thailand).

Uso estas ferramentas para guardar ideias, projectos, palavras para "passwords" (não sei se isso acontece convosco, mas os meus computadores estão sempre a pedir uma "password" nova), frases (devo confessar, sem falsas modéstias, que sou um grande coleccionador de frases*), listas de compras, códigos Pin, números de telemóvel, endereços, registo das despesas e de movimentos na conta bancária e cartão de crédito, etc, etc, etc.

Na minha vida, os caderninhos Clairefontaine e canetas Muji são tão importantes como a pá de assentar cimento para o trolha, os walkies talkies para os seguranças de centro comercial, as sapatilhas para o Nelson Évora ou a seringa para o arrumador drogado. São a minha ferramenta de trabalho.

Por norma, aprovisiono-me de cadernos e canetas em Paris.

Como nunca descobri nas nossas papelarias cadernos Clairefontaine da dimensão desejada (os mágicos 9x14 cm que se disfarçam com perfeição em qualquer bolso do casaco, mesmo no outrora reservado ao lenço), compro-os aos montes na papelaria no subsolo da Gibert Jaune, logo à entrada do Boulevard Saint Michel, no Quartier Latin.

As esferográficas Muji adquiro-as às dezenas na loja do Marais desta cadeia japonesa que não há meio de se instalar em Portugal (é por essas e por outras que desconfio que a globalização ainda tem de comer muita broa de Avintes).

Os cadernos podem variar na cor da capa (azuis, verdes, vermelhos), mas nunca no tamanho nem no quadriculado. Tenho pavor por cadernos de linhas e acho que o fundo quadriculado é muito mais disciplinador que a  folha em branco.

Confesso que já experimentei a versão 192 páginas, que, pela sua capacidade, é claramente a mais adequada às fases de repórter das nossas vidas (quando se enchem as páginas umas atrás das outras com apontamentos de conversas) mas tem o inconveniente de fazer um enorme chumaço no casaco, o que é muito mau para uma pessoa como eu, que sou um grande perito (provavelmente um dos maiores especialistas vivos) na arte de deformar bolsos.

Posto isto, informo que tenho ao serviço desde 4 de Julho um Clairefontaine de capa azul de 96 páginas, que ainda dura pelo menos até ao final do mês. O anterior, também azul, de 196 páginas, durou de Fevereiro a Julho.

Atendendo ao facto de boa parte da informação que arrumo nos cadernos quadriculados não ser perecível, guardo-os depois de esgotados e após ter posto na capa uma etiqueta com a informação cronológica do período da minha vida em que estiveram no activo.

Chegados a esta altura, 72,9% dos membros da lavandaria ainda se interrogam porque é que eu não uso os famigerados Moleskines.

E eu explico. Detesto quase tanto as pessoas que usam Moleskines como aquelas que calçam sapatos com berloques. 

Detesto os Moleskines por três ordens de razões:

1. São pornograficamente caros. Os dez euros que custa cada um chegam (e  sobram) para eu comprar uma dúzia de cadernos Clairefontaine;

2. É tão provável um escritor ou jornalista usar na dia a dia da sua vida real um Moleskine como o João Garcia (o alpinista, de nariz esquisito, não o meu bom amigo e colega) se equipar para as suas expedições numa loja Coronel Tapioca;

3. O papel dos Clairefontaine é infinitamente melhor que o dos Moleskine.

Cheguei primeiro aos Clairefontaine do que às canetas Muji. Adoptei a Muji como minha esferográfica oficial, depois de ter verificado que era a que mais suavemente deslizava e mais claramente imprimia o papel aveludado de 90 gramas/m2 dos cadernos Clairefontaine.
 
Acresce que é bastante alargada e plural a oferta da Muji na secção de esferográficas. Estão disponíveis num número praticamente infindável de cores. De momento, as minhas favoritas são as roxas, verde musgo, azul ultramarino e vermelho escuro.

Resumindo, baralhando e concluindo. Na minha opinião, a doçura e voluptuosidade da escrita só podem ser obtidas com o uso de esferográficas Muji e cadernos Clairefontaine.

* A  última frase que anotei foi a dirigida pelo impagável W Bush ao camarada Sócrates durante a recente audiência que lhe concedeu na Casa Branca: "I apreciate that you are setting such a good example for people in your own country and around the world by being an avid exerciser at the ripe old age of 50".

(cá para mim estava a gozar com ele de fininho...)

Jorge Fiel