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Lavandaria

por Jorge Fiel

Lavandaria

por Jorge Fiel

Sex | 28.12.07

Operação à vesícula e uma noite branca no Hospital de Santo António

Jorge Fiel

Ainda bem que não foi esta equipa que tratou da minha vesícula

 

 

A noite seguinte à operação, passada em branco, foi o segundo momento crítico da minha curta hospitalização para extracção da vesícula.

 

Passei a santa tarde a dormir. Eu bem me esforcei por virar páginas do «thriller» Whiteout, de Ken Follet, mas logo começava a cabecear, o livro caía-me no peito e eu adormecia. Uma maçada.

 

Paguei estas sestas inoportunas com uma noite em branco. E uma das piores coisas que pode acontecer a um doente hospitalizado, impossibilitado de se levantar da cama e com a recomendação de se mexer o menos possível, é passar a noite sem dormir.

 

A sensação de impotência é enorme. Não me parecia civilizado abrir a luz para ler. E cedo constatei ser a demonstração prática da expressão «estar sem posição».

 

A cama era curta demais para o meu 1m82. O meu corpo, com o tronco imóvel e dorido, deslizava nos lençóis. Para reagir a um incomodativo calor, pedi para me tirarem o cobertor e punha as pernas fora dos lençóis – e não tardava nada a sentir frio…

 

Nenhuma inclinação da cama me deixava confortável, mas inibi-me de passar a noite agarrado à campainha a pedir à enfermeira para baixar ou elevar a cabeceira da cama. Uma chatice.

 

Prevendo uma noite mal passada, fiz-me acompanhar pelo meu iPod. Mas a minha previdência é limitada. Não me lembrei de carregar a bateria e após uma hora e meia a debitar música variada (a minha versão do contar carneirinhos consistiu em concentrar-me nas letras e traduzi-las enquanto ouvia as músicas, o que no particular das canções da Aimee Mann não contribuía para elevar o moral) o aparelho calou-se. Passavam poucos minutos das quatro da manhã quando o iPod faleceu.

 

A alvorada do hospital foi libertadora, com o seu cortejo de ruídos e animação, abrir as persianas para deixar entrar a luz do dia, medir as tensões, verificar a temperatura, distribuir as pastilhas, mudar os frascos do soro, servir os pequenos almoços e a mudança de turno.

 

Todo este frenesim foi para mim uma enorme alegria e sepultou uma noite em branco apenas suavizada pelo bonito amarelo da bata da enfermeira do turno da noite (foi frequentemente à Enfermaria 3 porque o vizinho da cama ao lado queixava-se repetidamente de dores) e por uma pequena transgressão que passo a justificar.

 

A transgressão aos bons costumes consistiu em, a coberto da noite, ter-me consentido aliviar a acumulação de gases na região abdominal através da emissão (não silenciosa mas inodora) de quatro traques.

 

Em minha defesa, alego que o meteorismo foi uma espécie de remédio preventivo e auto-administrado das dores provocadas por excesso de gases.

 

Não sei se sabem (se não sabem ficam a saber) nas operações feitas com recurso a laparoscopia, é injectado ar para dentro de nós. E o ar que entra tem de sair – por cima (arroto) ou por baixo (traque).

 

Os quatro buracos abertos na minha barriga foram fechados com agrafes – e quando falo em agrafes estou a falar mesmo de agrafes em tudo idênticos aos que usamos no dia a dia para juntar folhas de papel A4 (há quem prefira o clip, que por sinal é uma bela peça de design) como tive oportunidade de verificar com estes olhinhos que a terra hão-de comer quando a enfermeira Maria mos tirou, onze dias depois, no Centro de Saúde de Lordelo.

 

Ter agrafes na barriga permitiu-me viver o drama pós parto das grávidas que quiseram ou tiveram de recorrer a cesariana.

 

Quando se tem a barriga agrafada de fresco, rir é uma experiência que rapidamente evolui para o choro. É de ir às lágrimas, não de contentamento, mas sim de dor.

 

Eu sei do que falo porque no final da tarde o meu vizinho do lado foi visitado por um tipo alto, sinistro, todo vestido de preto, com uns daqueles óculos com hastes larguíssimas e aerodinâmicas que estão na moda mas eu acho de um mau gosto atroz.

 

O sinistro homem de preto apresentou-se ao doente da cama 2 como o médico da dor. O meu colega e vizinho agradeceu a visita e perguntou-lhe o que é que ele lhe tinha para lhe dar.

 

(pelo sim pelo não faço legenda: da dor e dador soam exactamente da mesma maneira. A língua portuguesa é mesmo muito traiçoeira)

 

Foram dolorosas para mim todas as recordações do episódio do sinistro médico da dor, que, no meu caso concreto, falhou, porque provocou dor, em vez de a aliviar.

 

Deram-me ordem de soltura um pouco antes do meio dia, depois de me oferecerem uma chávena de chá quente e de se certificarem que eu me aguentava nas canetas quando fui à casa de banho escovar os dentes.

 

Com excepção dos dois momentos críticos (o xixi para o pistolão e a noite em branco) trata-se de uma história bonita e com um fim feliz.

 

Porém, antes de colocar o ponto final no relato desta minha experiência, permito-me abusar um pouco mais da vossa paciência e fazer um reparo.

 

Sou um fã incorrigível de série televisivas, incluindo as protagonizadas por médicos.

 

Já não me lembro muito bem do Dr. Kildare, mas actualmente sigo o ER, House e Anatomia de Grey (a principio quase me apaixonava pela Meredith mas agora já estou um bocado farto dela, não só da sua cara esquisita mas também da sua irritante personalidade).

 

Estas séries televisivas retratam o dia a dia hospitalar visto a partir dos médicos.

 

Ora a rotina de um hospital vista a partir de uma cama é muito diferente. Logo a começar, porque lidamos muito com auxiliares e enfermeiros – e raramente vemos os médicos.

 

FIM

 

 

PS. Seria muito ingrato da minha parte concluir este relato sem agradecer publicamente a quatro amigos médicos:

O Rui Ponce Leão, que diagnosticou o problema.

O Eurico Castro Alves que generosamente tratou de toda a logística e abriu as portas que havia para abrir

O Zé David que pacientemente extraiu uma vesícula complicada

O Zé Martins que não pode ser o anestesista como queria ser porque, no entretanto, nos deixou (um grande abraço para ti, onde quer que tu estejas, Zé!)

 

 

 

 

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