Recordações de uma hepatite na Primavera de 69
As ruas, cafés, esquinas, livros, canções, cheiros, lojas, jardins, praias, restaurantes e ofícios correlativos fazem muitas vezes de máquinas que nos permitem viajar no tempo e reviver momentos e situações, que por vias disso nunca conseguimos manter bem enterrados no passado.
Na Primavera de 1969, foi-me diagnosticada uma hepatite. Os sintomas eram estar ainda mais amarelo que o costume (à época as minhas feições levaram os meus colegas de liceu a atribuírem-me, depreciativamente, a alcunha de Chinês) e fazer um xixi cor do vinho do Porto. Na altura, a doença era tratada com dois a três meses de repouso absoluto na cama.
Cumpri esse castigo (arredondado pelos mimos da minha mãe, que volta e meia aliviava a dieta rigorosa dando-me um ovo estrelado em água) com o máximo de estoicidade que arranjei, enquanto matava o tempo relendo a minha colecção de livros dos Cinco e dos Sete, de Enyd Blyton (que só muito recentemente soube também ser a autora do Noddy), ouvindo na rádio, ao fim da tarde, o Página Um, e tocando vezes sem conta, no gira discos/mala de baquelite preta que tinha no chão à beira da cama, o único LP que possuía: In search of the lost chord, dos Moody Blues.
Este magnífico exemplar do rock sinfónico dos Moody foi a banda sonora desta minha triste tarde de feriado (consumida a escrever a crónica para o DN de amanhã e o perfil de Emergente para a edição de 6ª, o que faz com que o azul da minha disposição seja realmente muito escuro), levando-me a viajar de volta até aos meus tempos de jovem liceal do Alexandre Herculano, provisoriamente acamado com uma hepatite, residente no 2º andar do 304 da avenida Rodrigues de Freitas, que sonhava vir a ter uma namorada no Colégio Nossa Senhora de Esperança (as batas azul clarinho eram giríssimas e eu ansiava por poder ir esperá-la à saída, estacionado junto às árvores, do outro lado da rua, junto ao Jardim de S. Lázaro) - ou, à falta de melhor, uma miúda do Rainha Santa. Como nenhum desses sonhos se realizou parece-me desajustado concluir este post com a frase revivalista “those were the days”.