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Lavandaria

por Jorge Fiel

Lavandaria

por Jorge Fiel

Ter | 02.10.07

A problemática da vocalização durante a cópula

Jorge Fiel
As deficientes condições de isolamento acústico dos apartamentos modernos geram situações a um tempo incómodas para os vizinhos e inibidoras da livre expressão da nossa sexualidade.

O ponto de partida para esta reflexão é uma história que me foi contada pelo Kiki Eça de Queiroz, meu distinto amigo e preclaro ex-colega (mudei-me para a secretária que ele ocupava, que dispõe de uma bela situação geo-estratégica na Redacção do Expresso no Porto, após ele, há coisa de dois meses, ter acertado a rescisão do seu contrato de trabalho).

Conta o Kiki que uns vizinhos do lado, no prédio que habita na Alameda Eça de Queiroz (a rua apropriada para o bisneto do autor dos Maias estabelecer residência), não só tinham uma vida sexual muito activa como, ainda por cima, bastante ruidosa.

Queixa-se o Kiki que invariavelmente, a determinado passo da refrega, a vizinha berrava "Chupa-me, boi!", o que o incomodava.

Alega o Kiki, homem que gosta de exercitar os rigores da nossa língua (que, salvo seja!, é muito traiçoeira), que o desafio estava mal formulado.

Argumenta que atendendo à morfologia específica do focinho do boi, lhe seria impossível a prática do acto de chupar, pelo que vizinha deveria antes berrar "Lambe-me, boi!".

Claro que tudo isto não passa de um preciosismo. O vizinho só poderia ser boi em sentido muito figurado. É um ser humano e sabia perfeitamente a performance que a parceira desejava, independentemente dela usar o verbo "chupar" ou "lamber".

Há duas vertentes nesta história contada pelo Kiki. Uma é a da interacção oral no decorrer da relação sexual. A outra é a do respeito pelo sossego dos vizinhos.

Indo por partes, há primeiro que estabelecer um chão comum de conceitos na abordagem desta problemática. Fazer confusão entre a oralidade durante o sexo e o sexo oral é tão grave como confundir a obra-prima do mestre com a prima do mestre de obras, ou o Manuel Germano com o género humano.

O sexo oral é incompatível com a oralidade durante o sexo por razões de ordem prática (a língua está ocupada) e de educação (não se deve falar com a boca cheia).

Posto isto, nenhuma teoria sobre a oralidade durante o sexo pode ignorar a tese de doutoramento feita pela antropóloga Catarina Casanova onde se demonstra, urbi et orbi, que os chimpanzés vocalizem sempre durante a cópula.

Eu sou claramente a favor da vocalização durante o sexo. Todos os sentidos podem e devem ser usados em ordem a optimizar o prazer dado e recebido durante a relação sexual.

Claro que há conversas mais apropriadas do que outras. Nessas alturas não estou muito disponível, por exemplo, para debater se o melhor mozzarella é o do Lidl ou o do Pingo Doce. Em pleno transe, há valores mais altos que se levantam (eu não vos avisei que a nossa língua é muito traiçoeira?!?).

Sou favorável a toda a liberdade. Podem e devem usar-se não só todas as palavras armazenadas no Houaiss mas também outras que ainda não acederam ao douto dicionário, bem como todo o tipo de urros, uivos ou gemidos, mesmo que sejam tão lamentáveis como os fazem a banda sonora dos filmes porno dobrados em espanhol que passavam no canal Vivir/Viver ("folla-me, cariño, folla-me").

Posto isto, há a segunda questão, a do respeito pelo sossego dos vizinhos.

Este é o aspecto mais delicado. Camuflar berros, gemidos e frases rudes é uma tarefa fácil. Basta, por exemplo, usar como banda sonora da relação sexual peças de Modest Mussorgky como a Noite no Monte Calvo, com rastilho para 12m50s de sexo selvagem (na orquestração do compositor, já que na lamentável versão de unhas paradas de Rimsky-Korsakov dura apenas dez minutos) ou Quadros de Uma Exibição, 32 minutos de prazer intenso em que vale a pena fazer um esforço para tentar fazer coincidir com um orgasmo simultâneo com o final do andamento A Grande Porta de Kiev.

Para soluções para além da camuflagem, acho que os interessados devem recorrer a especialistas em insonorização de salas, podendo começar a aprovisionar, para o efeito, embalagens de ovos.

Jorge Fiel