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Lavandaria

por Jorge Fiel

Lavandaria

por Jorge Fiel

Ter | 21.10.08

O problema não é encontrar a estação ferroviária, mas sim desembrulharmo-nos no seu interior

Jorge Fiel

A Dworzec Warszawa Centralna vista do 30º andar do palácio da Cultura

Chegados a esta altura, a vomitar Polónia por todos os lados, os distintos sobreviventes desta lavandaria interrogam-se muito legitimamente sobre qual a relação entre a Ana M., uma adolescente bem apessoada da zona oriental do Porto,  e a estação central de caminhos de ferro de Varsóvia.

E eu respondo: Por favor, tenham calma. Há uma relação. Não óbvia, nem directa, mas há uma relação. Peço-vos para sossegarem um pouco.

Para começar, a Dworzec Warszawa Centralna (1) estava a ser construída a todo o vapor  (as obras iniciaram-se em 1971), com o objectivo de estar pronta para ser inaugurada em 1975, pelo camarada Brejnev, enquanto eu  investia algumas tardes num apartamento, junto ao antigo Estádio do Lima, na tarefa de convencer a Ana M. a queimar etapas no processo que nos poderia ter conduzido a um total e aprofundado conhecimento (no sentido bíblico) dos nossos corpos.

Para continuar, é muito fácil ao turista, mesmo que desprovido de qualquer sentido de orientação, dar com a estação. Ela fica junto ao omnipresente Palácio da Cultura e Ciência e no nó do sistema de transportes públicos de Varsóvia – é lá que bate o coração da única linha de metro e quase todas as linhas importantes de autocarro e eléctrico vão lá amarrar.

Da mesma maneira que não foi difícil eu ir até à cama com a Ana M. – os obstáculos só surgiram quando eu queria ir para a cama com ela – no caso da estação ferroviária central o problema não é dar com ela, mas sim desembrulhar-nos no seu interior .

Ao invés da Ana M. que era elegante e bem parecida (apesar de complicada de cabeça, como acho que já deu para perceber)  a estação central de Varsóvia é um matacão (2), que só visto ao longe e de cima disfarça - consumiu 12.500  toneladas de aço, 8.000 metros quadrados de vidro e 53 mil metros cúbicos de betão - e não é nada amiga do utilizador .

Tome nota de um bom conselho. Se for apanhar um comboio em Varsóvia e não está familiarizado com os labirínticos e tumultuosos corredores da estação, o melhor que tem a fazer é ser prudente  - cautelas e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém - e reservar uma boa meia hora de almofada para levar a bom porto a descoberta do caminho pedestre para a plataforma (peron) de onde vai partir o seu comboio.

As parecenças entre as minhas relações com a Ana M. e a Dworzec Warszawa Centralna começam a dissipar-se à medida que se aproxima o desfecho destas histórias.

No caso da Ana M., perdi a paciência e desisti antes de lograr entrar a bordo. No caso da estação ferroviária de Varsóvia consegui embarcar no comboio das 17h05 para Cracóvia.

 O estado da construção da estação ferroviária de Varsóvia no ano lectivo em que eu tentei sem sucesso saltar para a espinha da Ana M..

(continua)

…………………..

(1)  O curioso nome que os polacos dão à estação central de caminhos de ferro de Varsóvia,  que apesar de ter o local de implantação escolhido em 1946, logo no final da guerra, apenas começou a ser construida em 1971

 

(2) ) O facto de ter recebido um prémio polaco de arquitectura diz muito acerca da estética comunista nos anos 70

 

Seg | 20.10.08

Como a Dworzec Warszawa Centralna me fez logo lembrar as pernas da minha ex-namorada Ana M.

Jorge Fiel

A Dworzec Warszawa Centralna  (dito por outras palavras, a  Estação Central de Caminho de Ferro de Varsóvia )  fez-me logo lembrar uma das minhas primeiras namoradas, a Ana M. (1)

Foi muito fácil levá-la para a cama. Os problemas só começaram aí mesmo, onde era suposto tudo fluir como o trânsito na A17.

Eu só a conhecia de vista, do recreio do liceu António Nobre. Nunca tínhamos trocado sequer uma palavra, ou até um olhar mais demorado  – pelo menos que eu tivesse reparado.

Mas tenho de reconhecer que nestas coisas de apanhar no ar e interpretar sinais femininos eu sou um palerma acabado, com credenciais sólidas.

Um dia ao fim da tarde, estava no Piolho com o meu amigo João G., quando  ele, numa voz  baixinha, como se estivesse a falar numa igreja com a missa a decorrer, me pediu para irmos conversar lá para fora.

Presumi que o assunto era política. Como havia a fama de que alguns dos empregados do café arredondarem o ordenado como informadores da PIDE, não só não estranhei o pedido como até aprovei mentalmente a precaução.

“Conheces a Ana M. !? É tua colega no Nobre e minha vizinha. ..”

Sim eu conhecia-a. Ela era alta, magrinha, tinha um ar muito saudável, olhos grandes e bonitos, mas o uso intensivo de base e maquilhagem, as madeixas no cabelo e a forma queque de vestir não a indiciavam como potencial recruta para o combate à guerra colonial, à moral sexual burguesa e à reforma tecnocrática militar do ensino de Veiga Simão (a ordem é arbitrária).  

Resumi estas dúvidas ao João G.

“Não, não é nada disso. Não tem nada a ver com política. Ela sabe que eu me dou contigo, que sou teu amigo, e pediu-me para te dizer que gostava de muito de andar contigo…”.

O caso resolveu-se. Na manhã seguinte, calhou termos um furo ao mesmo tempo e eu fui ter com ela. Demos a mão, para selar a coisa, e fomos para sentar-nos num canto do recreio para lançar as bases da nossa relação.

A Ana M. aceitou na boa que fossemos passar a tarde a casa do meu amigo e camarada Pedro M. que ficava ali perto e estava sempre livre de pais até à noite.

Mas chegados ao sofá, quando eu me preparava para passarmos a formas superiores de luta, ela surpreendeu-me com uma exposição metódica e detalhada da sua visão gradualista da evolução dos acontecimentos.

Nesse primeiro dia, estava disposta a deixar-me apalpar-lhe as pernas, contanto que no sentido descendente. Era um bilhete só de ida.

Mas a Ana M. teve a bondade de me explicar o porquê desta restrição aparentemente bizarra.

Estava-me vedado apalpar-lhe as pernas no sentido ascendente porque ela não tinha depilado previamente as pernas e pretendia poupar-me à desagradável sensação de lhe sentir os pêlos.

E as mamas? Bem, as mamas ficavam para a semana...

Sei,  desde adolescente, que a persistência é uma virtude, pelo que não desisti à primeira. Apostei que no calor das hostilidades, a Ana M. iria revelar-se mais condescendente e aceitaria queimar algumas etapas.

(continua)

………………………

 

(1)  Obviamente trata-se de um nome falso, pois não me passaria sequer pela cabeça arejar aqui o seu nome verdadeiro. Aproveito para informar que os factos narrados são verdadeiros, mas ocorreram em 1972 e que eu não faço a mínima ideia do que é feito dela.

 

Dom | 19.10.08

A batalha por Varsóvia da Armia Krajova

Jorge Fiel

Ao longo da II Guerra Mundial, os polacos souberam redimir-se da fraca oposição militar à invasão do seu pais pelos exércitos nazi e soviético. A Polónia capitulou seis semanas após ter sido disparado o primeiro tiro.

Durante a Batalha de Inglaterra, um em cada oito pilotos da aviação aliada era polaco. Era também polaco o esquadrão 303, famoso por ser o que mais baixas infligiu à Luftwaffe.

As forças polacas distinguiram-se em momentos decisivos do conflito, como o cerco de Monte Cassino e o raide sobre Dieppe.

Eram polacos os matemáticos, que em Bletchely Park, tiveram um papel fundamental no desfecho da guerra ao decifrarem o código Enigma usado pelos alemães nas suas transmissões militares alemãs.

Mas a página mais gloriosa - e talvez a menos conhecida – foi escrita em 1944 pelo exército polaco do interior, durante os dois meses que durou o levantamento armado de Varsóvia.

A guerra encaminhava-se para o seu final, a derrota nazi era previsível. A linha avançada do Exército Vermelho acercava-se a Leste das portas de Varsóvia, quando a 1 de Agosto o exército polaco do interior (Armia Krajowa) saiu à rua.

Em “Rising’44/The Batlle for Warsaw”, Norman Davies descreve magistralmente os dois meses que durou a heróica sublevação armada dos patriotas polacos, detalhando pormenores tão saborosos como o do envolvimento nos combates do batalhão do exército polaco do interior exclusivamente constituído por surdos mudos.

Stalin apunhalou pelas costas a revolta ao ordenar que o Exército Vermelho detivesse o seu avanço sobre Varsóvia, enquanto do outro lado do rio, os voos picados dos Stuka e o rolo compressor da Wehrmacht esmagava os patriotas polacos e destruía Varsóvia.

Quando finalmente a 17 de Janeiro de 1945, o Exército Vermelho atravessou o Wisla e entrou em Varsóvia, 84% por cento da cidade estava reduzida a cinzas e tinham perdido a vida 700 mil civis. 

O cinismo assassino do Kremlin revela-se neste episódio em todo o seu esplendor. E a sua natureza paranóica do regime soviético é demonstrada por uma pequena história narrada por Davies.

Os fantoches que a URSS pôs no poder em Varsóvia, no final da guerra, mantiveram sob apertada vigilância, durante 25 anos a fio, um dos poucos comandantes sobreviventes do levantamento de 1944. O último relatório recebido pela polícia foi o  relativo ao seu funeral.  Sabem quem era o informador? A própria a mulher do patriota.

A má consciência dos comunistas polacos levou-os a sempre se recusarem reconhecer o significado do levantamento de 1944.

O que explica o facto de só depois da queda da ditadura comunista ter sido possível construír o monumento que lembra e homenageia os quatro mil patriotas que de armas na mão deram a vida lutando pela libertação do seu país.

Foi aqui, em frente ao antigo Teatro Nacional, que, nas comemorações do 50º aniversário de levantamento de 1944, o presidente alemão Roman Herzog pediu desculpa pelas atrocidades cometidas pelos nazis na Polónia.

 

(continua)

 

Sab | 18.10.08

I see dead people

Jorge Fiel

 

A direcção comunista da RDA não estava a inovar quando a 13 de Agosto de 1961 começou a construir o Muro de Berlim, dando assim um novo e gélido impulso à Guerra Fria.

21 anos antes, os seus compatriotas nazis acantonaram 380 mil judeus de Varsóvia num gueto, isolado por um muro com a extensão de 18 quilómetros.

O de Berlim seria maior (66,5 km) e mais duradouro  (28 anos, contra apenas três que durou o do gueto de Varsóvia) mas fica registada a predisposição natural dos alemães,  de credos ideológicos diversos, para a construção de muros.

Varsóvia  tem actualmente 1,7 milhões de habitantes, dos quais apenas uma ínfima minoria de dois mil são judeus.

Nem sempre foi assim.  Em 1939, quando do início da ocupação nazi, a capital polaca rivalizava com Nova Iorque como principal centro judaico mundial. Cerca de 400 mil judeus viviam em Varsóvia.

Diabolizados pelos nazis, que os elegeram como bode expiatório para todos os males da Alemanha, os judeus foram perseguidos, roubados, encerrados num gueto e, finalmente, exterminados.

Em 1940, 380 mil judeus foram fechados num gueto, que abrangia 73 das 1800 ruas que então constituíam Varsóvia, onde viveram amontoados – havia apenas um quarto disponível para cada oito pessoas.

A estratégia nazi começou por ser matá-los à fome. A dieta dos judeus do gueto tinha apenas 184 calorias por dia, quando os meticulosos e organizados nazis calculavam que um alemão precisava de 2.613 calorias diárias.

Cem mil tinham morrido à fome, quando a estratégia nazi conheceu uma inflexão e. a partir de 1942, os judeus sobreviventes do gueto começaram a ser metódica e massivamente embarcados em comboios, a partir de Umschlagplatz, para o campo de extermínio de Treblinka.

Até que em Abril de 1943, a ZOB, organização clandestina dos judeus do gueto, decidiu reagir e desencadeou, no dia 19, um levantamento armado, que apanhou de surpresa os nazis.

Os judeus insurgentes sabiam que se tratava de uma luta absolutamente desigual e que não tinham a mínima hipótese. Conseguiram prolongar o confronto por 27 dias. Ganharam o que estava ao seu alcance: uma saída honrosa e digna do mundo dos vivos.

A 16 de Maio, a revolta tinha sido esmagada por completo e o gueto de Varsóvia completamente arrasado.

A derrota militar e a vitória moral é celebrada por um monumento, num jardim construído no interior do perímetro do gueto, que encerra em si uma curiosa ironia:  a pedra usada tinha sido encomendado da Suécia por Hitler e destinava-se à construção de um arco que celebrasse o seu triunfo sobre os polacos.

Foi aqui, em Zamenhofa, em frente ao Monumento aos Heróis do Gueto, que Willy Brandt se ajoelhou, em 1970.

Caminhando pelas ruas e praças absolutamente desinteressantes da zona outrora ocupada pelo gueto, vivi a estranha sensação de que enlouqueceria se fosse como o Cole Sear (1) no perturbante filme “Sexto Sentido”, realizado por M. Night Shyamalan.

Na companhia de tantos mortos, nem o bom do dr. Malcom Crowe  (Bruce Willis) me valeria.

(continua)

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(1)  Famoso pela frase “I see dead people” e desempenhado por Haley Joel Osment 

Sex | 17.10.08

A coluna de Sigismundo, o infame rapto da estátua de Copérnico e o gelado de pistaccio do A. Blikle

Jorge Fiel

Ora aqui temos a Plac Zamkowy, com o Castelo Real à direita e a famosa coluna de Sigismundo (mais ou menos em frente...), vista da Krakowskie Prezdmiesci

A efervescente ulica Freta (1), cheia até transbordar de cafés, restaurantes e lojas de antiguidades, é a rua principal da Cidade Nova (Nowe Miasto).

Caminhando-se através dela atinge-se a muralha e penetra-se na Cidade Velha (Stare Miasto)  acto que poderá originar mais um “momento perfeito”, ou pelo menos algo muito perto disso.

Chegado à Plac Zamkowy, recomendo vivamente uma espreitadela mais ou menos demorada à coluna de Sigismundo por duas razões que passo a detalhar:

a)     Não é comum no mais católico dos países europeus que uma coluna tão alta (22 metros) seja encimada por um laico (no caso o rei Sigismundo) e não por um religioso;

 

b)    A este rei deve Cracóvia o facto de ter logrado chegar tão maravilhosamente bonita e intacta ao século XXI (lá falaremos sobre Cracóvia, mas a este ritmo isso não deverá ocorrer antes do Natal), pois foi Segismundo que, na sua inocência, mudou a capital para Varsóvia, expondo-a assim a sucessivas vagas de destruição.

 

Siga pela Krakowskie Prezdmiesci e faça o favor de demorar-se por lá. Não são os Campos Elísios, mas sabe bem flanar desde a coluna de Sigismundo até à Nowy Swiat, passando pelo Palácio Presidencial, o Ministério da Cultura (2),  a Universidade e a estátua de Copérnico cuja história (a da estátua, não a do Nicolau) pode não constituir um “momento perfeito” (nos dias de hoje) mas vale bem três parágrafos.

Desde 1830 a estátua do fundador da moderna astronomia moderna estava ali, posta em sossego, até que os nazis chegaram e estragaram tudo ao acrescentar uma placa de bronze reivindicando que o Copérnico era alemão.  

Alek Dawidoski, um jovem escuteiro e patriota polaco, não se conteve e surripiou a placa. De maus, os nazis retaliaram. Raptaram a estátua e esconderam-na na Silésia.

No final da Segunda Guerra, a legalidade foi reposta. O Copérnico de pedra voltou ao seu lugar na extremidade sul da Krakowskie, a mentirosa placa de bronze recolheu ao Museu de História de Varsóvia e o jovem escuteiro foi aclamado como um herói. Tudo está bem quando acaba bem. Estou em crer que, à época, terá sido um “momento perfeito”.

Deixando para trás o bom do Copérnico, que teve a sensatez de nos reduzir à nossa insignificância (perspicaz, compreendeu que a nossa galáxia é uma entre biliões, num vasto universo), entra-se na Nowy Swiat (Novo Mundo).

A pedonal Nowy Swiat  desenvolve-se em curva e é provavelmente a rua mais cara do Monopólio polaco. Estão lá as lojas de todas as marcas que interessam (e também das que não interessam), a livraria que vende livros em línguas estrangeiras, uma agência do Millennium polaco e, acima de tudo, o café A. Blikle.

Desde 1869, que o A. Blikle recebe – sempre na mesma rua, mas nem sempre no mesmo número (agora está no 33) – sucessivas gerações de intelectuais, artistas, famílias indígenas e turistas que fazem o que os guias recomendam nas suas sábias páginas.

O Blikle é famoso pelos donuts (escreve-se “pqczki” mas, por favor, não me perguntam como se pronuncia!), que o general De Gaulle  encomendava para entrega ao domicílio, em Paris. Mas o seu gelado de pistaccio, que se consumido na esplanada importa em 17 zlotys, uns cinco euros), também é um óptimo pretexto para uma viagem a Varsóvia – e saboreá-lo é algo muito próximo de ser um “momento perfeito”.

(continua)   

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(1) Marie Curie nasceu no número 15, onde está instalado um museu dedicado à sua vida e obra.

 

(2) Instalado no edifício onde, num baile em sua honra, o maroto do Napoleão Bonaparte foi apresentado à Maria Walewska.

Qui | 16.10.08

Passeio em busca de momentos perfeitos

Jorge Fiel

Aperaltando-se para um momento perfeito?

Algures no terceiro quartel do século XX, a Celsa (a namorada de um amigo meu que era um gajo porreiro, se bem que um pouco casposo) vivia na busca do que ela designava por “momentos perfeitos”.

Céptico incorrigível desde muito novo, nunca acreditei muito nessa treta dos “momentos perfeitos”, um conceito que desconfio ela terá ido buscar a um livro de um qualquer Lobsang Rampa.

Na minha opinião - que não é modesta, como já todos repararam -  emana deste conceito alguma religiosidade, ou, em alternativa, alguma badalhoquice,  mas isso já é outra história porque a ideia é falar de Varsóvia e não de orgasmos.

Um “momento perfeito” não só é uma coisa tremendamente subjectiva como até pode ser um conceito perigoso, na justa medida em que a sua busca pressupõe um precário e periclitante equilíbrio entre local, disposição e companhia.

Apesar de desconfiar sempre destes estranhos alinhamentos de astros, e de ter para mim que a demanda da perfeição é mãe de muita infelicidade, vou tomar emprestado o conceito à Celsa (estou certo que ela não se importará) para sugerir uma passeata onde podem ocorrer alguns “momentos perfeitos”.

É um passeio relativamente curto (três quilómetros, ou seja pouco mais de uma hora se feito nas calmas e com paragens), em que se segue sempre em frente, o que é perfeito pois é quase absolutamente impossível uma pessoa perder-se.

Apresenta ainda a vantagem suplementar do percurso se desenrolar quase em linha recta entre a igreja da Visitação da Virgem Maria (na Cidade Nova) e o Rondo De Gaulle’a, no final da Nowy Swiát – e toda a gente sabe que, por norma, a linha recta é o caminho mais curto entre dois pontos.

Trata-se exactamente do mesmo trajecto que percorri em Janeiro de 2006, no dia em que os meus tomates enregelaram (felizmente sem consequências demográficas de maior para a Humanidade), mas é infinitamente mais agradável feito com 23 graus (positivos) do que com 15 graus negativos. A temperatura exterior pode fazer toda a diferença quando buscamos momentos perfeitos.

Situo o ponto de partida desta excursão pedonal no jardim e miradouros situados nas traseiras da já citada Igreja da Visitação da Virgem Maria (a mais antiga da Cidade Nova), de onde se desfruta de uma magnífica panorâmica do Wisla, o rio que depois de banhar Cracóvia, escala Varsóvia, em direcção em Gandsk, onde se encontra com o Atlântico.

Em boa hora o município de Varsóvia procedeu à instalação de uns simpáticos banquinhos de pedra no jardim/miradouro o que ajuda muito quando se busca a perfeição. Parece que não, mas é muito mais fácil atingir um momento perfeito em posição sentado (preferencialmente até deitado, digo eu) do que de pé.

 

Um momento perfeito falhado?

(continua)  

Qua | 15.10.08

Pierogi e bigos dilatam-me os horizontes

Jorge Fiel

O Porto não é famoso pelo cosmopolitismo da sua oferta gastronómica.  É certo que a coisa melhorou um bocado desde os tempos em que uma ida ao Chinês da Ponte era a maior extravagância ao alcance dos residentes na cidade de onde houve o nome de Portugal – para além de uma ou outra pizzaria desgraçada, cujo produto era de qualidade substancialmente inferior ao que eu próprio confeccionava em benefício de familiares, amigos e conhecidos.

Neste momento, e não contando com a incontornável praga de chineses (e nenhum, que eu saiba, a servir “dim sum”!), há uma curta, mas razoável, oferta de japoneses, indianos, brasileiros, espanhóis, italianos e até mesmo um tailandês, no Cais de Gaia, que ainda não estreei. Qualquer dia até existirá um mexicano decente – e daí até a um indonésio e à Regionalização será apenas um pequeno passo.

Agora de restaurantes polacos, é que nada, niente, rien de rien, nothing at all,  e  – por que não dizê-lo? - nie! E, ou muito me engano ou estas negativas podem ter tiradas a papel químico para Lisboa.

Esta viagem a Varsóvia e Cracóvia permitiu-me dilatar os horizontes do meu palato a duas novas e importantes realidades, que dão pelos bem apanhados nomes de Bigos e Pierogi.

O Bigos não é exactamente um prato leve, mas levado à boca revelou-se tão suculento como aparenta. Trata-se de um guisado de carne, couve, cebola e choucrute.

Ao almoço do domingo, dia 7 de Setembro de 2008, confortavelmente instalado na esplanada do Boruta (2), na elegante e triangular praça da Cidade Nova, alambuzei-me a uma dose de Bigos, servido no interior de um pão com o formato aproximado do alentejano, que importou em 20 zlotys (cerca de seis euros) e me soube pela vida. Fiquei freguês.

No dia seguinte, também ao almoço mas já não em esplanada  (estava a chover) iniciei-me no mundo dos Pierogi, que são uma espécie de raviolis com recheios variados – carne, couve, cogumelos, queijo, fruta ou chocolate - servidos com um apetitoso molho em cima.

Recomendo que a experiência Pierogi (3) seja feito em grupo e que cada comensal encomende uma variedade diferente, que depois partilhará com os outros, na absoluta observância aos princípios dos cristãos primitivos.

Este breve relatório das minhas aventuras gastronómicas na capital dos polacos não ficaria completa se eu guardasse segredo da existência da cervejaria onde jantei no domingo.

Se for a Varsóvia, não deixe de ir ao Kompania Piwna Podwale (4), uma cervejaria frequentada pelos indígenas e onde, num magnífico pátio interior, empregados envergando trajes tradicionais servem doses industriais de carnes de porco variadas, batatas e choucrute, bem como enormes canecas de cerveja, a preços absolutamente generosos (de saldo, diria mesmo), que deglutimos tendo como banda sonora música folclórica polaca interpretada ao vivo, no local, por uns pândegos fardados a rigor.

Muito típico. Deliramos com esta experiência, apesar de reconhecer que ela foi aqui e ali salpicada de alguma javardice.  

 

(continua)

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(1)  Refiro-me aos genuínos e não a chineses travestidos em japoneses  por vias da exposição pública que a ASAE fez das suas misérias

 

(2)  Restaurante Boruta, ulica (rua) Freta 38

 

(3) A nossa decorreu no restaurante Creple Kluchy, que pratica preços imbatíveis e fica no 29/30 da ulica Bednarska, uma perpendicular à Krakowskie, à esquerda, em direcção ao rio

 

(4)  Esta cervejaria que recomendo fortemente fica no 25 da ulica Podwale, uma rua que parte da plac (praça) Zamkowy e evolui paralela à muralha

 

Ter | 14.10.08

A praça da Stare Miasto é muito fixe

Jorge Fiel

 

Usando uma expressão muito a gosto de um dos mais célebres inquilinos da Câmara de Lisboa (1), é preciso dizer com toda frontalidade que Varsóvia não integra a lista de cidades que é obrigatório ver antes de morrer.

Dito isto, acrescento, naquele jeito pragmático que aprendi com os CSNY (2), que se por um daqueles acasos em que a vida é fértil der consigo em Varsóvia, faça o favor de a amar.

Apesar de estarmos sempre a tropeçar em placas (há umas 300 espalhadas por toda a cidade) informando-nos que naquele local os nazis executaram patriotas polacos e/ou judeus, a capital polaca vale bem várias missas (igrejas não faltam, meus preclaros amigos!).

Três dias incompletos em Varsóvia proporcionaram-me várias  experiências agradáveis (adjectivo que penso adequar-se melhor ao que pretende dizer significar do que o “gratificantes”), que passo a inventariar o mais sumariamente que sei, num esforço homérico para evitar que a dimensão deste conjunto de notas de viagens ultrapasse o da Guerra e Paz, essa magistral obra de Tolstoi.

A Cidade Velha (Stare Miasto) é muito fixe e é uma dessas experiências que valem a pena.

Apesar das fachadas coloridas da Rynek (praça) da Cidade Velha terem mais ou menos a minha idade, aparentam ser muito mais velhas e são bem mais giras do que eu. Tão atractivas ao olhar que convenceram os peritos da Unesco a declarar o conjunto Património da Humanidade.

A fonte com a sereia (símbolo da cidade) é um belo sítio para tirar uma fotografia. 

Por cerca de dez zlotys (três euros, o preço que cobram por uma caneca de Zywiec) pode alugar mesa e cadeira numa das esplanadas que cobrem a praça (3), habilitando-se assim a um feliz par de horas a pastar as fachadas dos prédios ricamente decoradas, a manter uma conversa mole ou a aprender histórias curiosas no guia (gratuito e muito bem escrito, rima e é verdade) “Warsaw In Your Pocket”.

As ruas à volta da praça, no interior da muralha, são porreiras para passear e, como agravante, abundam lojas de “recuerdos”, onde completar a sua  lista de compras obrigatórias – magnetos de frigorífico com a sereia e a dizer Warszawa, canecas decoradas com a águia polaca e t-shirts vermelhas com a palavra Polska debruada a branco.

(continua)

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(1) Refiro-me, obviamente, ao Baptista Bastos, genial inventor da fabulosa pergunta “Onde é que você estava no 25 de Abril?”, colega a quem eu faço um único reparo – o de ter copiado a mania do laço do meu amigo Nicolau Santos…

 

(2)  Iniciais dos Crosby, Stills, Nash and Young, banda que nos legou um fabuloso reportório de canções hino e um lúcido conselho: “If you can’t be with the one you love, love the one you are with”

 

(3)  Quando a temperatura ambiente se situa em terreno positivo…

 

Seg | 13.10.08

As cidades e as pessoas devem saber envelhecer

Jorge Fiel

 

No alegre entusiasmo que se seguiu à derrocada do comunismo, gerou-se um forte movimento a favor da demolição do Palácio da Cultura e Ciência de Varsóvia.

Fico muito satisfeito por este movimento não ter levado a sua avante – e pela preservação desta memória do realismo socialista e de quatro décadas de férreo domínio comunista, dinamitado por uma coligação entre o papa polaco e a agitação do sindicato Solidarinosci, nascido nos estaleiros navais de Gdansk (1) e liderado por bigodudo Lech Walesa (2), que haveria de chegar a presidente da República e a Nobel da Paz (sorte a dele!).

Sou contra todas as tentativas de “liftings” ou “peelings” à cara das cidades, que devem preservar as marcas da sua vida. Neste sentido acho que Berlim esteve bem, ao manter vestígios dos tempos em que foi uma cidade dividida por um muro.

Tal como as pessoas, as cidades devem ser saber envelhecer -  e ter orgulho nas suas rugas.

A extraordinária explosão de arquitectura moderna e arrojada levada a cabo no coração de Berlim, aproveitando os terrenos deixados livres pela derrube do muro, não é incompatível com a preservação de vestígios como a Karl Marx Allee, um pano do Muro e até o Check Point Charlie – só para citar três exemplos.

Voltando à vaca fria. O 30º e último andar do Palácio da Cultura é um belo sítio para passar um par de horas a ler, conversar ou até jogar cartas (a opção tomada pelo Pedro e João) enquanto se beberrica um café e se dá uma vista de olhos aérea à extensa e plana cidade de Varsóvia.

Das 3.288 salas do Palácio, apenas espreitamos uma, cuja majestosidade estalinista logo me lembrou a decoração das estações de metro de Moscovo.

Tive muita pena de não ter tido tempo para visitar a famosa Sala Kongresowa, inspirada no Scala de Milão, que foi uma espécie de “avant la lettre” dos “espaços multiusos” que estão hoje o mais possível na moda, pois já recebeu eventos tão diversos como congressos do POUP, concertos dos Rolling Stones (em 1967!) e exibições dos Chippendales – a célebre companhia de “strip tease” masculino.

Rodeado por jardins e esplanadas, relativamente agradáveis, o palácio tem na sua vizinhança a Estação Central de Caminho de Ferro e um moderno centro comercial.

É neste imenso quarteirão que bate o sistema de transportes públicos de Varsóvia, que se revelou à altura do esforço que eu fiz para adquirir os passes, a que demos um uso intenso durante as 32 horas que nos demoramos na cidade, após a sua compra.

As viagens de eléctrico, autocarro e metro feitas em Varsóvia, confirmaram integralmente a opinião que eu tinha formado em Praga e Budapeste.

As eficientes redes urbanas de transportes públicos, muito assentes no eléctrico, são dos pontos mais positivos da herança que as capitais de Leste receberam dos anos do comunismo.    

 Parece o Metro de Moscovo

 

(continua)

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(1)  A antiga Danzig, cuja invasão pela Wehrmacht, a 1 de Setembro de 1939, foi o primeiro acto da II Guerra Mundial.

 

(2)  A este propósito, interrogo-me sobre se não seria este (ser uma Walesista ferrenha) o motivo porque a miúda da loja da aleja Solidarinosci usava bigode…

 

(3)  Partido Operário Unificado Polaco, o pseudónimo do partido comunista.

 

 

Dom | 12.10.08

Um Empire State Building atarracado, talvez assim preparado para aguentar um qualquer King Kong

Jorge Fiel

 

Varsóvia é como as pessoas, que vistas ao longe são sempre melhores do que ao perto. Tem um nome forte e romântico, que ganha o adequado dramatismo escrito (sobretudo dito) em polaco – Warszawa.

Ao baptizar a aliança militar anti-Nato (Pacto de Varsóvia), estabelecida entre a URSS e os países de Leste (ditas “democracias populares”) que giravam na sua órbita, o nome da capital polaca tornou-se uma das marcas de água do século XX.

Para ver Varsóvia ao longe, nada melhor do que investir 20 zlotys (cerca de seis euros) na subida ao 30º andar do Palac Kultury i Nauki (Palácio da Cultura e Ciência), um imenso e desajeitado ícone dos tempos da Guerra Fria que tatuou a paisagem de Varsóvia.

Oferecido pelo “povo soviético” (cinco mil operários russos trabalharam durante três anos na sua construção), o Palácio da Cultura está para Varsóvia como a Torre Eiffel para Paris, o Big Ben para Londres, e a Torre dos Clérigos para o Porto (1).

Na imponência dos seus 40 milhões de tijolos e 231 metros de altura, o palácio é omnipresente. Como se vê de todo o lado, assume o útil um papel de farol urbano, idêntico ao que era assegurado pelas Twins Towers, em Nova Iorque.

Uma pessoa saía do “subway” e o nosso olhar procurava instintivamente que as torres gémeas nos orientassem, dizendo-nos que a “downtown” era para ali - e a "uptown" no sentido contrário.

Na data da sua inauguração (1955, ou seja Stalin já pertencia ao mundo dos mortos), o Palácio da Cultura era o segundo edifício mais alto da Europa.

E ainda mantém o título de mais alto de toda a Polónia, apesar do acelerado regresso do capitalismo lhe estar a fornecer farta companhia na linha de horizonte de Varsóvia, que outrora dominou isoladamente.

Olha-se para ele e fica-se com a impressão de que é uma espécie de Empire State Building atarracado, muito menos elegante, mas mais musculoso, talvez preparado para melhor aguentar, sem ceder, a eventual presença de um qualquer King Kong (2).

A justeza desta minha primeira impressão confirmou-se quando soube que Stalin enviou secretamente para Nova Iorque espiões que tinham como missão reunir informações sobre o método norte-americano de construção de arranha céus, posteriormente usadas na edificação do palácio da Cultura.

   Ir ao 30º andar custa 20 zlotys

 

 

 

(continua)

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(1) Se bem que eu suspeite que não tarda muito a que a estranha forma da Casa da Música substitua neste papel o elegante ponto de exclamação barroco riscada por Nasoni.

(2) Entre muitas outras coisas o Palac Kuktury alberga um moderno multiplex de cinemas...

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